Friday, December 21, 2007
Linhas de espuma
Quando as pedras estalavam ao calor do meio dia em Agosto virei o corpo escaldante de lado e afastei o sol dos meus olhos cansados da noite, inventando-te ali, deitada lado a lado com o meu corpo naquela areia grossa e castanha. O teu corpo branco e inerte reflectia a luz do sol com uma intensidade quase insuportável. No teu sono tinhas uma mão pousada ao acaso sobre a minha perna direita. E aquele torpor que nos invadia, esmagando-nos no areal, transformou-se no próprio fruto da nossa familiaridade: o silêncio. Intimidade de dois corpos juntos na mesma viagem. Muito ao longe ouvia-se um som de cidade, um rugido de vida para além dos limites da nossa paixão.
Aqui nada mais é futuro.
Corri então uma mão tórrida ao longo de uma linha imaginária no teu pescoço e senti nos meus dedos a fragilidade concreta dos teus cabelos cheirando a sal e a fantasia. Despertei-te com o meu toque e chamaste-me para ti com o teu olhar, e então eu percebi quão desnecessárias foram sempre todas as palavras. O sol atordoava e os nossos lábios procuraram-se como se provassem cerejas fora de época, vendidas em pequenas e luxuosas caixinhas de madeira. A apenas ténue frescura que soprava vinda do oceano atirou uma madeixa do teu cabelo para cima do teu rosto, perfeito ao sol, e por detrás dela, como se escondida por trás de palmeiras antigas, os teus olhos falaram-me ao ouvido da tua sede de estar ali, longe de tudo e finalmente tão próxima de seres real.
Aqui nada mais é passado.
Os sons da cidade desapareceram então por completo e subitamente tudo o que se sentia era o mar, a brisa quente, as aves e o estalar constante das pedras ao calor da tarde em Agosto. Então ergueste-te, ficando sentada e inclinada sobre mim, e com os teus dedos em concha trouxeste sombra aos meus olhos para melhor entenderes de onde vieram todos os segredos que murmurei às tuas mãos, que caminhos fizemos nós para chegarmos aqui. Depois ausentaste-te fazendo com a ponta do indicador estranhos sinais no meu rosto. Ergui-me também, esperei que terminasses os teus ritos, e agarrei com delicadeza firme a totalidade do teu corpo.
Nada disto é real.
Tudo aqui é o mais verdadeiro possível. As nossas bocas tocaram-se de novo e os nossos lábios unidos arderam num beijo vindo das índias. Todo o meu corpo doía com a proximidade do teu, e sem nos darmos conta o horizonte tinha-se já erguido na tentativa de tocar o sol, de o seduzir. As pedras já não estalavam sob o calor e levantei-me por completo. Espreguicei-me. Sorrindo para mim deixaste-te puxar por uma mão seca para junto irmos provar a água. Seguimos abraçados desenhando pés solitários na areia húmida até à linha onde o atlântico permitiu que houvesse terra, e para essa terra olhámos uma vez mais antes de entrarmos de mãos dadas num mar que o sol poente transformou em ouro líquido. Com o mar pela cintura beijei-te, envolvendo o teu corpo nos meus braços, quando uma onda ligeiramente mais forte nos bateu e te desequilibrou. Sorriste-me sob os cabelos molhados e agarraste-me rindo às gargalhadas com esse teu sorriso largo de mil tiaras de pedras preciosas. E só então o sol desapareceu por completo, seduzido finalmente pelo horizonte que se ergueu para ele. Olhaste-me séria, apertando o teu corpo contra o meu, e beijaste-me como na primeira vez.
O que procuro em ti é esquecer-me de mim.
O mar, mansinho, recompôs então linhas de espuma na areia grossa. Pequenos caranguejos translúcidos correram aparentemente sem sentido na maré baixa, deixando para trás minúsculos buracos na areia onde a água do mar borbulhava por breves instantes. As nossas pegadas foram apagadas pela água e pelo vento. Mais acima, na areia seca, duas toalhas de praia colocadas lado a lado foram-se enchendo da areia trazida pelo vento mais forte que se ia levantando. Uma delas ergueu-se um pouco no vento para cair parcialmente sobre a outra. As folhas de um livro viravam-se rápidas e ao acaso.
(Fotografia: Mussulo, Angola, Agosto de 2007 / Texto: Porto, Portugal, 21 de Dezembro de 2007)
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Friday, December 14, 2007
Na tua ausência
Este sol tépido de Inverno aquece-me o rosto e arregaço as mangas da camisa para que ele acaricie também este braço com que te escrevo e o outro, que segura um pequeno bloco que comprei com a única intenção de nele escrever para ti neste dia.
Ontem ficou lá atrás, e apesar de ficar para sempre povoado de instantes de angústia e sofrimento ficará também como o dia no qual soube de que se trata quando se fala num beijo. Quando levei a mão ao puxador da porta do carro e me impediste de sair, e me puxaste para ti, senti a corda que sempre trouxe apertar-se em torno do pescoço. E tive medo. Mas fui, e quando os meus lábios tocaram os teus simplesmente parei de pensar. Tinha pensado e dito já tudo o que podia pensar ou dizer. Senti uma mão monstruosa revolvendo-me e rasgando-me o estômago, e a delicadeza dos teus lábios, a suavidade com que sofregamente procuraste os meus e os negaste ao mesmo tempo, a sensualidade quente com que os abriste aos primeiros sinais do meu beijo. E eu deixei as minhas mãos ao abandono sobre o teu cabelo sem fazer a menor ideia de como depois te acenar um adeus. E fui.
Passei depois horas tocando de leve nos meus lábios, procurando de novo a sensação daquele beijo, o seu gosto, e fechei os olhos para o reviver vezes sem fim até lhe arrancar todo o significado e o deixar vazio de todas as coisas.
E hoje, espanto! O dia acordou radioso! Um lindo sol de Inverno invadiu-me o quarto e banhou-me de calor mal as janelas foram abertas. E agora aqui estou, escrevendo-te no local onde me encontraste, onde sabes que sempre estarei mesmo quando estiver distante, sentindo o que sobra do calor deste sol até ao fim de mais um dia. Mas apesar do maravilhoso de tudo o que me circunda e do milagre de todas as coisas que existem à minha volta, nada preencherá nunca mais a tua ausência.
(Fotografia: Porto, Portugal, Setembro de 2007 / Texto: Porto, Portugal, 14 de Dezembro de 2007)
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Sunday, December 09, 2007
Sem limites
Fala ao teu filho de mim, como me disseste que fazias.
Conta-lhe quem eu sou,
Como eu sou,
O que faço
E tudo o que te fui dizendo.
Conta-lhe como não tenho limites,
Pois ao fazê-lo vais-te ouvir a ti mesma
E recordar para sempre
Todas as palavras preciosas que te entreguei
Em todos aqueles preciosos momentos
Que a vida nos deu ao acaso.
Talvez soem melhor ditas por ti.
Talvez assim eu não seja esquecido.
De todas as vezes que me perguntaste
Porque sinto o que digo sentir por ti,
Apenas consegui cair no rídiculo
De não te conseguir explicar
Aquilo que nem eu entendo.
E eu que achava que conseguia
Falar sobre todas as coisas!
Mas eu não tenho limites,
E vivo com uma intensidade
De exagero.
Lembras-te?
Mas nessa ausência de limites
Que dizes que tenho
Não esqueças de assinalar
Que só mesmo tu és o elemento
Em que esbarro a todos os instantes
Para onde quer que me vire!
Por tudo isto ouso pedir-te
(Ouso desejar em segredo)
Que me ensines a amar-te,
Que me ensines a nunca mais
Te perder.
Porque tudo o que me deres
Será sempre só teu,
Como já é.
(Texto: Coimbra, 9 de Dezembro de 2007)
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Conta-lhe quem eu sou,
Como eu sou,
O que faço
E tudo o que te fui dizendo.
Conta-lhe como não tenho limites,
Pois ao fazê-lo vais-te ouvir a ti mesma
E recordar para sempre
Todas as palavras preciosas que te entreguei
Em todos aqueles preciosos momentos
Que a vida nos deu ao acaso.
Talvez soem melhor ditas por ti.
Talvez assim eu não seja esquecido.
De todas as vezes que me perguntaste
Porque sinto o que digo sentir por ti,
Apenas consegui cair no rídiculo
De não te conseguir explicar
Aquilo que nem eu entendo.
E eu que achava que conseguia
Falar sobre todas as coisas!
Mas eu não tenho limites,
E vivo com uma intensidade
De exagero.
Lembras-te?
Mas nessa ausência de limites
Que dizes que tenho
Não esqueças de assinalar
Que só mesmo tu és o elemento
Em que esbarro a todos os instantes
Para onde quer que me vire!
Por tudo isto ouso pedir-te
(Ouso desejar em segredo)
Que me ensines a amar-te,
Que me ensines a nunca mais
Te perder.
Porque tudo o que me deres
Será sempre só teu,
Como já é.
(Texto: Coimbra, 9 de Dezembro de 2007)
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Wednesday, December 05, 2007
Tiny tears
Won’t bad things ever end? Won’t dreams ever leave me alone? I’m more tired every day. Whenever there’s a choice it seems I always choose the wrong one. Plus I always give up too easily, and always loose something along the way. Someone following me could easily find me by the tracks I leave above the ground; tiny tears along the way.
(Photography: Porto, Portugal, September 24th, 2007 / Text: Lisbon, Portugal, December 5th, 2007)
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Sunday, December 02, 2007
Dedicatória
Como podia eu saber do que sentia falta ao longo dos anos se não sabia quem eras? Como era possível eu pretender perceber o que se sente quando se ama se nunca me tinha visto reflectido no teu olhar? Se já o suspeitava agora sei! É possível amar-te, sim. É possível desejar pegar-te nas mãos e guardar-te para sempre. É possível desejar não mais partir para parte alguma onde não estejas. É possível desejar envolver-te a cintura nos braços e rodopiar lentamente até que outra manhã desponte. Fechar o corpo em concha para te protegar lá dentro, ouvindo a tua voz suave. E agora vou seguir em frente com a inquietude e desassossego que me ofereceste nesta noite de névoa, desejando sempre que nunca me esqueças.
Para a Daniela Dias
(Fotografia: Figueira da Foz, Portugal, 16 de Setembro de 2007 / Texto: Coimbra, Portugal, 2 de Dezembro de 2007)
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Wednesday, November 28, 2007
No pó
Friday, November 23, 2007
Silly little things
Yet… it rains, but in rainfall I sense your half lunatic eyes setting fire to my body from just across the street… 1, 2, 3 ignition! I run fast through the crowd, bumping into every person who happens to be in my way… slipping and falling in the street pavement floating in dirty cold water. And I shout! I cry out loud your name, looking at every direction amongst the crowd, until I sense that burning in my skin again. Until the Demon takes hold of me once more! I turn my head and there you are again, wearing that red skirt, in the black and white world of my imagination! And there I go again running in pursuit, crying out loud your name, slipping, falling, and bumping into strange inhabitants of a lonely, lonely planet… A policeman holds my arm, and makes a gesture to hit me, but I get rid of my coat, struggling to run after you. Then I loose you from sight again, and while I wait with my eyes closed for the Demon to show me the way, I get rid of my shoes… And then, suddenly, it happens again. It’s unleashed once more! My skin burns, my eyes get filled with blood, my tongue aches, and my legs beg me to run… 3, 2, 1 and I run! I run to you, just as if we were the only survivors of a deadly species. And as I run I shout your name in the rain, as I run I don’t care about anyone anymore, as I run I don’t fell the bruises on my feet, as I run all I want is to catch you, as I run all I see is you and what remains of colour in this dark world! I need to get you, throw you to the ground, and make love with you right there in the street before we part again… for my past, my future, everything’s behind me now. I just need to try and tell silly things to you, my Demon.
(Photography: chromatic alteration, 2007 / Text: Lisbon, November 23rd, 2007)
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Friday, November 09, 2007
The moment of defeat
When she came I was half awake. She came slowly from an orange and purple horizon like a cloud of poisonous gas, and I opened my eyes, and I had only time to lie in bed before her hand touched my bare skin. She kissed my foot and slowly rose up to my mouth. She caressed me and then it was the end of my life as I used to live it. I realised I was defeated, and finally awake forever. And I whispered “I love you, I hate you!”.
(Photography: Paris, France, December 2006 / Text: Lisbon, Portugal, November 9th 2007)
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Thursday, November 01, 2007
A journey
Maybe I couldn’t do it differently. Have you thought about that? Has it crossed your mind at any moment, even if just for a fraction of time? I’m not saying I didn’t love you. All I’m saying is that it wasn’t enough, apparently, and for that I am truly sorry. But what’s love anyway, if not a way to completely fuck up what’s left of your brain? I always needed new beginnings, and love tends to stick to your skin for long periods. It’s nobody’s fault. The point is that we’re all different from one another.
I had really enchanting moments. Without seeing enough I’ve seen it all. I know how it works – the world has no mysteries anymore. I’ve seen this earth and how it goes. And what I’ve seen is of such great beauty that I’m coming to the point of not being able to take anymore of that drug. What good is beauty if one cannot reach it and feel its warmth? To be aware is not sufficient anymore. I need much more! I need to forget, and so here I am trying my luck, thinking what I shouldn’t think, doing what I shouldn't do. Here we go! And from now on nothing will be the same.
(Photograph: alteration on picture in Spain, April 2007 / Text: Lisbon, Portugal, November 1st, 2007)
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Friday, October 26, 2007
O sonho de Marion
Era uma vez, há muito tempo atrás, uma marioneta verde. Ela não era verde propriamente! Verde era o vestido com que quem a fez a vestiu, verde com pequeninas pintas brancas. Por cabelos tinha sedosas barbas de milho seco nos anos, e por braços e pernas pequenos ramos de salgueiro. No rosto tinha desenhados grandes olhos verdes, como o seu vestido, e uma boca sem grande expressão. Não se sabia, olhando-se para ela, se estava feliz ou triste.
A sua dona, uma menina de oito anos de idade, de vez em quando lá a tirava da caixa onde estava guardada, junto com outros brinquedos, e representava com ela a vida que achava que iria ter quando crescesse. Por entre casas de bonecas e destroços de brincadeiras espalhados pelo chão do quarto, Marion, a marioneta, passeava e representava a vida que a sua dona desejava naquele instante, de histórias de amor a dramas, de brincadeiras de escola a tragédias, consoante a imaginação do momento.
Mas Marion não era uma marioneta qualquer, não! A dona de Marion não sabia que quem a fez tinha um encanto tal nas mãos que deu a Marion a capacidade de sonhar, de sentir. E Marion sentia! E o que Marion sentia, por muita afeição que nutrisse pela sua dona, era uma vontade enorme de se libertar dos fios que a prendiam à cruz de madeira com que a controlavam, com que lhe dirigiam os movimentos e as acções, e sair para conhecer o mundo, para assistir ao pôr-do-sol, para ver como o mar tinha ondas, para olhar como o céu tinha estrelas, para sentir a areia nos pés, para caminhar pelas ruas, para dançar nos bailes, para correr nos prados da cor do seu vestido. Marion sonhava com esse dia em que, sem cordas, se erguesse e caminhasse pelos seus próprios pés, escolhendo o seu próprio destino.
Certa noite uma estranha luz invadiu por breves instantes a caixa onde Marion era guardada entre outras estranhas tropas de bonecas e brinquedos. E quando a luz se extinguiu Marion sentiu um movimento dentro da caixa. E esse movimento era uma perna sua que se mexia! Pasmo! Marion mexia-se! O sonho de Marion tinha-se concretizado. Então, devagarinho pela estranheza de tudo, Marion ousou levantar a tampa da caixa e espreitar o mundo lá fora. Olhou para a direita, olhou para a esquerda, e finalmente a boca sem expressão de Marion se transformou num belo e rasgado sorriso.
Saltou da caixa, caminhou um momento sem sentido, experimentando as suas pernas e a sensação de não ter ninguém a controlá-la, e depois foi! Foi conhecer esse mundo que tanto a fascinava. Esse mundo que via do lado de fora da janela, com tantos bonecos caminhando pelas ruas sem fios, livres, indo onde quisessem ir e fazendo aquilo que desejassem fazer. Havia até bonecos de quatro patas, mais pequeninos e com pelo, que a fascinavam e abanavam para ela uma curiosa extremidade peluda.
E Marion caminhou e caminhou pelas ruas, pelas cidades, pelo mundo. Anos se passaram e Marion nunca mais teve cordas a prenderem-lhe braços e pernas. E Marion viu tudo o que desejava ter visto. Viu a aurora boreal e conheceu uma chuva de estrelas, rodopiou na relva e sentiu a chuva no rosto... Mas com o passar dos anos também o sorriso de Marion se ia esbatendo no seu rosto de boneca. Marion viu gente vivendo sem sorrir, conheceu a expressão do sofrimento e da impotência estampada nos rostos de muitos. Marion ouviu falar, e viu, imagens da guerra que uns declaravam a outros. Conheçeu a opressão e a servidão. Viu crianças sem os pais que a sua antiga dona tinha, que a beijavam todas as noites quando a iam deitar. Viu rostos perdidos e com medo. Marion aprendeu o que era de facto a morte. E então, e só então, se deu conta que todos estavam, como ela tinha estado um dia, presos a fios que os controlavam. De certa forma não eram assim tão distintos. A grande diferença é que estes fios de agora, por não poderem ser vistos, não poderiam ser cortados com facilidade. Marion caminhou então para a costa, uma vez mais, e lá chegada sentou-se na areia a olhar as pequeninas ondas que iam e vinham, e a pensar, enterrando os seus pézinhos de salgueiro na maré baixa... Fechou os olhos.
Tempos depois uma senhora muito velhinha passeava na praia com o seu cão quando bateu com o pé descalço em algo que a magoou. Parou, e baixando-se com a dificuldade dos anos, desenterrou o restante do que a agredira. Era uma cruz de madeira com uns fios presos. A idosa puxou pelos fios e lá veio, cheia de areias e já muito estragada, uma pequenina marioneta com um vestido verde com pintinhas brancas. Já não tinha cabelos nem boca, mas os olhos... ah, os olhos não deixavam enganar! Nunca os esqueceria! E então ergueu a boneca, susteve-a no ar frente aos olhos por momentos, e abraçando-a junto ao peito exclamou com um sorriso e lágrimas verdadeiras na voz “Marion! Minha Marion! Vamos para casa...”
(Fotografia: sobreexposição, Portel, Portugal – 6 de Outubro de 2007 / Texto: Lisboa, Portugal – 26 de Outubro de 2007)
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Friday, October 19, 2007
Quanto do teu sal...
Desculpa ter saído de repente. Temi que se continuasse fosse cair ainda mais fundo. Como eu existem centenas ou milhares de pessoas neste mundo. À sua maneira própria vão caindo e levantando-se, vão sobrevivendo e desistindo. Mas a verdade é que o mundo não nos soube dar grandes chances, e talvez não tenhamos sabido nós procurá-las. O mundo que nos maravilha e deslumbra é o mesmo que nos esmaga com uma facilidade inimaginável. É ao mesmo tempo belo e cruel, sedutor e carcereiro.
Tempos houve, faz muitos anos atrás, em que julguei ser único! Hoje sei bem que não sou e isso acabou por não contribuir em muito a não ser para uma melhor compreensão das coisas. Então acho que me fui afastando e começando a tentar aceitar formas alternativas de existir. Melhor, fui-me tentando obrigar a aceitá-las sem o conseguir. Por isso senti o final de que falei aproximar-se, o cheiro do momento da derrota, esse preciso instante em que, sentindo o medo e antecipando as consequências, ainda assim me entreguei como se gritando à vida “Faz lá então tu o que não consigo fazer”. E nesse mesmo instante senti partir-se cá dentro o maior bem deste mundo, a esperança. Sem esse bem senti-me então despido e vazio, mas também, por inerência, com menos peso para a viagem.
Sai de repente porque receei que os pensamentos começassem a alinhar-se na fila da solidão todos à espera de vez para sair, após te ter confiado segredos que nunca confiei a ninguém, talvez para dividir o cansaço e a desilusão. Que mal me poderias tu fazer que eu já não tivesse feito antes de ti? Pelo menos alguém talvez possa tentar entender como amei esta terra, e porque em simultâneo a aprendi a odiar tanto. Demasiada perfeição chateia, e é por isso que me irrita este mundo, que apesar de tudo é insistentemente maravilhoso.
Não sou único. Não sou melhor nem pior que ninguém, apenas um inadaptado.
(Fotografia: Monsarraz, Portugal, 7 de Outubro de 2007 / Texto: Lisboa, Portugal, 19 de Outubro de 2007)
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Thursday, October 11, 2007
Nearby Future
What day is today? I’m not going mad, I just don’t seem to remember some of the most important things in my life. Don’t really know what happened, but something did, and it was today.
(Photography: chromatic change, Esporão, Portugal, October 7th 2007 / Text: Lisboa, Portugal, October 11th 2007)
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Thursday, September 06, 2007
O mundo nas tuas mãos
Se vivesses aqui estarias agora em casa
Relembro o crepitar de uma lareira na Lousã em Dezembro numa casa que era minha e a paz que ali senti com a minha cadela preguiçando pela sala semi-aquecida nessa noite próxima do Natal. E sinto uma ausência. Relembro-me junto ao Tamisa em Londres fumando um cigarro numa amurada do rio e assistindo ao devir rápido da cidade transitando da luz para a escuridão. E sinto uma ausência. Relembro um fim de tarde gelado e ventoso mas solarengo em frente ao mar na cidade do Porto sentado numa cadeira o casaco bem fechado luvas e cachecol cobrindo-me boca e nariz e eu feliz na ventania com o sal marinho a queimar-me os olhos. E sinto uma ausência. Relembro um entardecer chuvoso e escuro em Coimbra e eu junto ao rio esperando o transporte para casa ouvindo as badaladas da torre da Universidade. E sinto uma ausência. Relembro-me pelas ruas de Capri em Janeiro à noite cantando em dueto ao frio da madrugada instigado pelo excesso de cerveja e alegria. E sinto uma ausência. Relembro as sombras das plantas da rua no alaranjado das paredes brancas da casa de Coimbra ao pôr-do-sol e eu sentado no sofá frente à janela ouvindo Maria Callas e aguardando com entusiasmo a chegada da Ursa Maior ao meu olhar de criança. E sinto uma ausência. Relembro caminhar por Amsterdão com uma música de Jobim na cabeça e pensando na melhor prenda a dar a uma mulher. E sinto uma ausência. Relembro uma felicidade tão grande que não acreditava que pudesse existir mais que isso na vida. E sinto uma ausência. Relembro tanto mais que não queria esquecer nunca. E sinto uma ausência. Relembro-me num banho de água quente deitado sonolento e coberto de espuma com jazz vindo da sala misturado com aroma de incenso e um copo de Martini Bianco pousado na borda da banheira num quarto de banho iluminado somente por velas. E sinto uma ausência. Relembro uma noite quente na Nazaré frente ao mar numa varanda com boa companhia e virando uma garrafa de Porto nos breves intervalos do silêncio antes do mergulho na madrugada. E sinto uma ausência. Relembro-me fotografando em Paris no Dezembro mais gelado da minha vida com um gorro enfiado na cabeça e cobrindo-me as orelhas. E sinto uma ausência. Relembro conversas de automóvel ao som de boa música vidros abertos e braço de fora segurando o cigarro que ia fumando a intervalos ao distanciar-me de lado nenhum. E sinto uma ausência. Relembro um corredor escuro na Universidade e eu sentado um tempo sem fim num sofá à espera de saber a classificação do meu trabalho e uma porta de madeira abrindo-se finalmente e aquela frase que me fez pensar por uns dias que poderia realmente voar. E sinto uma ausência. Relembro caminhar ao longo da baia de Luanda com todo o vagar e saudade de outros céus mais frios. E sinto uma ausência. Relembro uma mesa composta de companheirismo e saudade antecipada no Porto quando palavras poderiam perfeitamente ter sido colocadas de lado em prol de sorrisos e olhares. E sinto uma ausência. Relembro a excitação de um regresso a casa após uma viagem e a antecipação dos sorrisos sem haver lugar para os maus momentos. E sinto uma ausência. Relembro-me deslumbrado pelas aves ao entardecer de Fevereiro em Roma bebendo um café e aquecendo na chávena os meus dedos para melhor pegar na caneta com que escrevia. E sinto uma ausência. Relembro a esperança no futuro quando fechava os olhos na noite e poderia ter sido quase tudo sem sair de um mesmo lugar. E sinto uma ausência. Relembro acreditarem em mim e de eu próprio acreditar. E sinto uma ausência. Relembro daram-me parabéns e cantarem-me num jantar de aniversário. E sinto uma ausência. Relembro o sofrimento ao abandonar pela última vez o pequeno quarto onde me fiz adulto para me lançar na aventura falhada da vida e de me ter sentado na borda da cama olhando as estantes vazias agora onde antes havia vida. E sinto uma ausência. Relembro a voz perdida e distante da minha mãe ao telefone a milhares de quilómetros. E sinto uma ausência. Relembro os olhos incertos e assustados do meu avô numa cama de hospital nos seus últimos dias de vida procurando prados verdes em paredes pintadas de azul. E sinto uma ausência. Relembro passear de braço dado pelas docas da Coruña sem querer realmente saber como seria o dia seguinte procurando escolher o local ideal para jantar. E sinto uma ausência. Relembro o soluço contido da minha avó no dia da minha partida para Angola. E sinto uma ausência. Relembro as cortinas brancas de um hotel na Foz do Arelho ondulando na brisa da tarde num quarto sobre um mar coberto por um céu púrpura. E sinto uma ausência. Relembro um aperto de mão e um “até breve”. E sinto uma ausência. Relembro estar sentado na praia numa manhã de Julho em Sanxenxo sentindo o sol acariciar-me a pele após uma noite de cansaços e álcool com aves planando suavemente ao alcançe de um braço num sonho. E sinto uma ausência. Relembro acordar de manhã com a excitação de uma viagem à muito esperada só para conferir uma vez mais a bagagem arrumada à vários dias atrás. E sinto uma ausência. Relembro o aperto que sinto cada vez que passo de comboio pela casa onde cresci a caminho de qualquer lugar distante. E sinto uma ausência. Relembro-me na estação ferroviária de Nápoles com a desejada cabeça pousada sonolenta sobre o meu ombro direito e eu petrificado de espanto sem saber o que fazer ou o que dizer e um cigarro fumando-se sozinho numa mão esquerda de pedra. E sinto uma ausência. Relembro os dedos do meu pai cheirando a tabaco ao lavar-me o rosto com água fria antes de me deitar e me dizer adeus para sempre. E sinto uma ausência. Relembro o desejado cigarro em Bilbao após horas encerrado aborrecido enfadado num museu. E sinto uma ausência. Relembro de me terem certo dia desejado “boa sorte”. E sinto uma ausência. E de tanto sentir todas estas ausências de tudo o que vivi ou imaginei ter vivido quase que me rasgo em dois no desejo de ir fazendo o percurso inverso até encontrar de novo uma vez mais cada um desses frágeis momentos que pouco significando em si mesmos deram sentido ao que sou e substância a tudo quanto desejo da vida. É como se cada segundo passado fosse um fragmento da mesma fita adesiva que me envolve e sustém em mim cacos conexos. Escrevendo assim talvez um dia se a memória me falhar em definitivo eu possa ler tudo isto e no que leio descobrir quem fui e dar-me conta que sem cada um desses instantes eu seria apenas e nada mais do que a catástrofe.
(Fotografia: Porto, Portugal, Junho de 2007 / Texto: Luanda, Angola, 3 e 4 de Setembro de 2007)
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(Fotografia: Porto, Portugal, Junho de 2007 / Texto: Luanda, Angola, 3 e 4 de Setembro de 2007)
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Friday, August 31, 2007
Noutro lugar
São cinco da tarde de finais de um Novembro frio e cinzento na cidade do Porto. Ameaçou chover sem ter chovido, e passeio-me sem pressas pelas calçadas atapetadas de folhas mortas. O vento que sopra tráz um cheiro a maresia e eu fecho até cima o casaco e inspiro fundo, o que me faz arder as narinas. A esta hora já muitas pessoas vão largando os empregos e o trânsito mostra-se já vagaroso e impaciente junto ao Centro Português de Fotografia. Acendo um cigarro com as mãos geladas e espero um pouco, observando o movimento das gentes e deixando-me deslumbrar pelos reclamos luminosos das lojas e pela iluminação ainda ténue dos candeeiros públicos contra um céu de chumbo. Começaram já a colocar as iluminações de Natal ainda que não estejam acesas e reparo também nesse trabalho.
Já não tardará muito a chover mas, no entanto, sinto um desejo profundo de ir até à costa escutar as ondas e as aves… Levaria no mínimo meia hora, e para o vento que de certeza se faz sentir naquelas bandas não vim eu preparado com o respectivo cachecol. Sinto pena mas não vou. Apetecia-me, mas também me sinto bem aqui onde estou. Estou feliz! Mais tarde irei ao encontro de amigos para um agradável jantar, onde sei que me fartarei de rir e sorrir apesar dos meus silêncios. À medida em que os anos vão avançando, já vim a constatar, tendo-o até comentado com um amigo mais chegado, e apesar de ser cada vez mais invadido por sensações e opiniões que buscam desesperadamente o exterior, a verdade é que me exprimo com cada vez menor frequência. Por exemplo, a meio de uma troca de opniões entre várias pessoas muitas são as vezes em que calo o que estava prestes a dizer. No exacto momento em que o penso também logo ali se extinge o desejo. É quase como se cá dentro perguntassem: “Para quê? Que importa o que tens a dizer?” Normalmente mantenho-me em silêncio. Felizmente outros preenchem o vazio.
Este também sou eu, suponho. Se faz parte de mim tenho de aceitar. E se o que tinha a dizer era mesmo importante, por vezes sento-me e escrevo um pouco sobre isso dando-o depois a conhecer ao mundo. Por isso acho que o jantar com os amigos será um pouco silencioso para mim, dando-me tempo e espaço para aproveitar a sua companhia com uma alegria sincera que só eu conheço.
É Novembro e este vento frio no rosto e nos dedos faz-me arder os olhos mas faz-me também feliz! Pouco passa das cinco da tarde e para mim é como se fosse Natal já. Vou jantar entre amigos nesta noite ventosa em que ameaça chover, tudo tão diferente de Luanda, de onde vim faz pouco tempo, e também por isto me sinto abençoado. No fundo estarei aqui para sempre, bem como em todos os sítios onde sonhei sempre em estar. Queria ir até ao Castelo do Queijo passear no nevoeiro nocturno, fechar o meu casaco de cabedal e deixar transformar-se em couro a pele do rosto. Queria os olhos vermelhos a explodir do vento e da alegria que sinto por estar vivo e por estar aqui. Queria, mas não vou. Que figura faria a chegar de olhos vermelhos e inchados ao jantar! Fica para depois, para outro dia talvez… Poderiam pensar que chorava, quando me sinto tão feliz que nem sei mais explicar!
Onde estou eu? Por vezes duvido que saiba! Sempre estive nos lugares amando-os, mas também sentindo outras ausências, ausências de outros lugares. Muitas vezes estive em vários ao mesmo tempo. Talvez também por isso os silêncios, para me darem tempo a mim de conversar com outros interlocutores! Talvez também por isso nunca me entregue inteiramente, talvez. Mas hoje, hoje irei jantar com amigos, e apesar das ausências desejo conseguir agir por forma a que todos sem excepção saibam bem o quanto significam para mim. Hoje erguerei o meu copo num brinde a cada um deles, para que nos revejamos sempre aqui ou em outro qualquer lugar, pois que qualquer lugar é perfeito para sermos felizes.
(Fotografia: Luanda – Angola, 22 de Agosto de 2007 / Texto: Luanda – Angola, 25 de Agosto de 2007)
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Monday, July 23, 2007
Like fish in a pond
This night I woke up with the rain. It was around 4 a.m. and I could hear it tapping the plastic chairs outside the door, by the garden. The wind and the rain made me think about winter, although it’s July, and I felt a strange nostalgia. Will I miss this? I just remember staying awake for long...
I remember some years ago, while I was waiting for a train to come smoking a cigarette and staring at the rails, noticing a butterfly. It was circling around, until it touched the rails and stood there quietly, just slightly moving its wings in the heat. My eyes couldn’t stop staring at such fragile beauty, waiting for the moment when it would rise in the air again, showing all of its colours.
Yet it didn’t. That butterfly had reached right there, before my eyes, the end of its life. Only a few minutes had gone by and already its coloured body was being blown by the breeze, lifeless. Sadness took hold on me and made me think about how we sometimes forget to notice the constant fragile miracles that happen everyday around us. It had reached the end of its cycle, as we all will one day.
I’m used to think about how my existence is empty and worthless. Most of my years have been spent complaining about everything, always wanting more, and forgetting to hear and listen. I really have to change that! Now, as I’m preparing to leave on a trip for a long period, I don’t know where to store these emotions of mine anymore. I realise I’ve lived magical moments without giving them much credit, although my life wasn’t as perfect as I expected it to be. We may be fish trapped in ponds, but even so there’s always beauty around us if we’re willing to open our eyes and see.
I haven’t reached the end of my cycle yet, and from now on I will try to always notice how wonderful it is to be here in this world, and how beautiful things surrounding us can be. I think it’s ok to feel nostalgia on stormy July nights, and to feel a little scared about tomorrow too, but I do hope that now that I’m preparing to jump to another pond the ones who know me never question what I feel about them and the reasons of my decision. It's not that I dislike this pond, it's just that I need a bigger one now. I wish I could take them all where I’m going, but instead I will try to bring back the best of me to rejoin them soon.
(Photography: Porto, Portugal, July 2007 / Text: Coimbra, Portugal, July 23rd 2007)
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I remember some years ago, while I was waiting for a train to come smoking a cigarette and staring at the rails, noticing a butterfly. It was circling around, until it touched the rails and stood there quietly, just slightly moving its wings in the heat. My eyes couldn’t stop staring at such fragile beauty, waiting for the moment when it would rise in the air again, showing all of its colours.
Yet it didn’t. That butterfly had reached right there, before my eyes, the end of its life. Only a few minutes had gone by and already its coloured body was being blown by the breeze, lifeless. Sadness took hold on me and made me think about how we sometimes forget to notice the constant fragile miracles that happen everyday around us. It had reached the end of its cycle, as we all will one day.
I’m used to think about how my existence is empty and worthless. Most of my years have been spent complaining about everything, always wanting more, and forgetting to hear and listen. I really have to change that! Now, as I’m preparing to leave on a trip for a long period, I don’t know where to store these emotions of mine anymore. I realise I’ve lived magical moments without giving them much credit, although my life wasn’t as perfect as I expected it to be. We may be fish trapped in ponds, but even so there’s always beauty around us if we’re willing to open our eyes and see.
I haven’t reached the end of my cycle yet, and from now on I will try to always notice how wonderful it is to be here in this world, and how beautiful things surrounding us can be. I think it’s ok to feel nostalgia on stormy July nights, and to feel a little scared about tomorrow too, but I do hope that now that I’m preparing to jump to another pond the ones who know me never question what I feel about them and the reasons of my decision. It's not that I dislike this pond, it's just that I need a bigger one now. I wish I could take them all where I’m going, but instead I will try to bring back the best of me to rejoin them soon.
(Photography: Porto, Portugal, July 2007 / Text: Coimbra, Portugal, July 23rd 2007)
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Sunday, July 08, 2007
1976
Agora tudo é mais fácil. Os dias vão-se sucedendo aos dias e a decisão tomada acaba por decidir por mim as rotinas e os hábitos diários. Agora é só deixar-me levar e cumprir o desejo de outrora como um homem, mordendo os lábios em silêncio para não deixar transparecer a angústia e o medo, não esquecendo de guardar na bagagem a rede encantada de capturar os sonhos nas planícies...
Tinham-me dito, naquele tempo, que haviam anjos em Kinshasa, e eu na tenra juventude acreditei e não cuidei de olhar para o caminho já feito e de notar que eles tinham ficado lá atrás, longe já, agitando as suas pétalas de desespero no lado de lá da fronteira vermelha e negra. Espectros esfarrapados e em desespero lançando na poeira daquele chão martirizado as últimas lágrimas do adeus. Não era em Kinshasa que estavam, não! Os anjos estavam longe dali. Ali quem estavam eram homens fardados que para nos protegerem de nós mesmos nos arrancaram a todos as asas e nos disseram que doravante a nossa vida seria assim e assim…
(Fotografia: Porto, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra, Portugal, 8 de Julho de 2007)
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Tinham-me dito, naquele tempo, que haviam anjos em Kinshasa, e eu na tenra juventude acreditei e não cuidei de olhar para o caminho já feito e de notar que eles tinham ficado lá atrás, longe já, agitando as suas pétalas de desespero no lado de lá da fronteira vermelha e negra. Espectros esfarrapados e em desespero lançando na poeira daquele chão martirizado as últimas lágrimas do adeus. Não era em Kinshasa que estavam, não! Os anjos estavam longe dali. Ali quem estavam eram homens fardados que para nos protegerem de nós mesmos nos arrancaram a todos as asas e nos disseram que doravante a nossa vida seria assim e assim…
(Fotografia: Porto, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra, Portugal, 8 de Julho de 2007)
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Tuesday, June 26, 2007
Postcard from Africa
Sangano, February 13th, 2007.
Darling,
If only I was a good writer to let you know what’s happening, make videos to share with you some of the beauty with which my days are filled, record a tape for you to listen the same sounds I do everyday. How I wish there was a way of letting you have some of this easily since I can’t have you here with me…
I want to tell you about the times when my breathing stops for some seconds, mostly at dusk, whenever I’m more aware of those fragile and beautiful moments and of how they won’t return to me that same way. It’s been happening to me frequently, you know? Maybe you feel the same there, and I do hope you let me know the next time I hear from you.
Frequently I caught myself staring at the waves at sunset, as seabirds fly in circles over them in search for food, and it’s like being in a trance. Immediately after I always feel your absence, every-time the same feeling. Only then I remember we’re under the same sky, we simply see it from different perspectives, like two lighthouses over the same wide bay, each of us keeping his eye on a same distant horizon.
Miss you.
Yours always.
(Photography: Sangano, Angola, February 13th, 2007 / Text: Coimbra, Portugal, June 26th, 2007)
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Darling,
If only I was a good writer to let you know what’s happening, make videos to share with you some of the beauty with which my days are filled, record a tape for you to listen the same sounds I do everyday. How I wish there was a way of letting you have some of this easily since I can’t have you here with me…
I want to tell you about the times when my breathing stops for some seconds, mostly at dusk, whenever I’m more aware of those fragile and beautiful moments and of how they won’t return to me that same way. It’s been happening to me frequently, you know? Maybe you feel the same there, and I do hope you let me know the next time I hear from you.
Frequently I caught myself staring at the waves at sunset, as seabirds fly in circles over them in search for food, and it’s like being in a trance. Immediately after I always feel your absence, every-time the same feeling. Only then I remember we’re under the same sky, we simply see it from different perspectives, like two lighthouses over the same wide bay, each of us keeping his eye on a same distant horizon.
Miss you.
Yours always.
(Photography: Sangano, Angola, February 13th, 2007 / Text: Coimbra, Portugal, June 26th, 2007)
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Monday, June 25, 2007
Anunciação de um sonho
Quando o dia esperado finalmente chegar prometo fazer rápido as minhas bagagens para que ninguém sinta para além de mim o peso da decisão que tomo. Espera-me a Terra, esse mundo tantos anos desejado e visitado em delírios de febre. Um mundo tão cheio de pesadelos e de sonhos por realizar e que aprendi a amar ao ponto de não conseguir concebê-lo sem que uma poderosa mão invisível me aperte o estômago e me rasgue de dentro para fora. Um mundo elástico que ao longo dos anos se foi esticando para chegar até mim e tocar-me sempre, como uma mãe procurando manter acesa num filho uma lembrança distante.
Quero sentir de manhã cedo o avião a perder altitude, olhar a janela e ver os milhares de casas sobre a terra vermelha salpicada de verde e minutos depois sair e deixar as saudades envolverem-se com a humidade da pista do aeroporto. Quero sentir de novo a emoção que senti e que foi maior que qualquer outra coisa que algum dia senti nesta vida. Estive vivo por um período limitado de tempo. Quero sair e ver rostos conhecidos à minha espera, de sorriso largo e braços abertos para me acolherem na minha nova vida na Terra onde naquele dia distante vim a este mundo e espreitei a existência. E quero encontrar em cada um desses rostos que me olhem, em cada mão que me toque, em cada palavra que me digam, novas e novas razões para ficar na Terra para nunca mais sair.
Quando o dia chegar as saudades que sempre serão minhas e de mais ninguém não ocuparão volume na bagagem. Levá-las-ei comigo para onde for, e serão sempre essas imagens preciosas que desenharei na areia e a quem brindarei quando erguer um copo. Há lugar para tudo, e um tempo também. Mas a atracção que sinto há muito já que decidiu por mim o que havia a decidir, e a cada dia que passa me é mais insuportável viver afastado da Terra. Viver longe não é viver.
Acho que sei a falta que me vão fazer certas pessoas, certas coisas, a minha cadela companheira... Acho, porque a certeza apenas a terei quando ao fim de algum tempo parar para pensar no que tenho, no que tive um dia, e no que sobra de mim nesta complexa equação. Apenas a ideia dessa perda faz já sofrer, e se ainda assim desejo viver o regresso à Terra é porque não tenho dúvidas de que seria bem maior a dor de não regressar mais, de não procurar viver até onde me for possível este sonho que tenho desde criança de abraçar uma realidade que nunca me deixou independentemente de eu não o conseguir explicar. A perda seria bem maior, talvez insuperável, porque do lado de cá da viagem, deste lado onde me encontro à espera, uma certa loucura vai tomando conta de mim dia após dia. Espero que aqueles que têm de compreender, para quem isto faça sentido, compreendam a necessidade que sinto de seguir este percurso. Preciso da vida, e este nunca foi o meu habitat.
A imaginação é inerente à natureza humana, e no fundo talvez eu sempre tenha sido a pessoa mais feliz de todas aquelas que conheço, pois o meu maior sonho sempre foi algo que esteve ao meu alcance, e que agarrei já – regressar à Terra. Quero agora regressar de novo para viver diariamente esse sonho pelo resto da minha vida, ou enquanto me for possível vivê-lo, pois estou certo de que todas as imagens que me irão preencher me irão acompanhar para sempre e acalmar-me deste medo da morte que trago desde criança. Estou certo de ali ir encontrar razões para seguir em frente e viver um outro dia, ideais nos quais consiga acreditar sem esforço, ainda que os desafios que diariamente se nos coloquem não sejam os mesmos a que sempre estive habituado. Preciso de uma causa que me faça lutar.
Quero aprender a viver de coisas simples, ver o mundo como se fosse cego, experimentar sensações reais e deixar este teatro que diariamente faço faz muitos anos já. Comer quando tiver fome, beber quando tiver sede, vestir o que tiver mais à mão, conversar no calor da noite até de madrugada sempre que o assunto for bom, regressar a casa com a cidade a acordar e o trânsito a invadir as ruas, acordar com o canto das peixeiras na Mutamba, revisitar velhos amigos sempre que possível, entrar num grupo e cantar, assar peixes na brasa de noite bebendo uma Cuca a estalar, sentir uma mão aninhada na minha, talvez ser pai um dia... Se tudo isto eu irei ou não conseguir não sei, mas caso o consiga poderei sorrir de verdade, pois fiz da minha vida o sonho que sempre desejei que ela fosse. O meu maior sonho é simples. E assim, quando deitar a cabeça na areia ou entrar no mar de água tépida não me esquecerei jamais de ninguém, pois na minha felicidade os reinventarei a todos, mesmo quando o passado for definitivamente passado e não algo de que ainda se vê o vulto no horizonte. Até muito breve mamã.
(Fotografia: Luanda, Angola, 11 de Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra, Portugal, 25 de Junho de 2007)
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Quero sentir de manhã cedo o avião a perder altitude, olhar a janela e ver os milhares de casas sobre a terra vermelha salpicada de verde e minutos depois sair e deixar as saudades envolverem-se com a humidade da pista do aeroporto. Quero sentir de novo a emoção que senti e que foi maior que qualquer outra coisa que algum dia senti nesta vida. Estive vivo por um período limitado de tempo. Quero sair e ver rostos conhecidos à minha espera, de sorriso largo e braços abertos para me acolherem na minha nova vida na Terra onde naquele dia distante vim a este mundo e espreitei a existência. E quero encontrar em cada um desses rostos que me olhem, em cada mão que me toque, em cada palavra que me digam, novas e novas razões para ficar na Terra para nunca mais sair.
Quando o dia chegar as saudades que sempre serão minhas e de mais ninguém não ocuparão volume na bagagem. Levá-las-ei comigo para onde for, e serão sempre essas imagens preciosas que desenharei na areia e a quem brindarei quando erguer um copo. Há lugar para tudo, e um tempo também. Mas a atracção que sinto há muito já que decidiu por mim o que havia a decidir, e a cada dia que passa me é mais insuportável viver afastado da Terra. Viver longe não é viver.
Acho que sei a falta que me vão fazer certas pessoas, certas coisas, a minha cadela companheira... Acho, porque a certeza apenas a terei quando ao fim de algum tempo parar para pensar no que tenho, no que tive um dia, e no que sobra de mim nesta complexa equação. Apenas a ideia dessa perda faz já sofrer, e se ainda assim desejo viver o regresso à Terra é porque não tenho dúvidas de que seria bem maior a dor de não regressar mais, de não procurar viver até onde me for possível este sonho que tenho desde criança de abraçar uma realidade que nunca me deixou independentemente de eu não o conseguir explicar. A perda seria bem maior, talvez insuperável, porque do lado de cá da viagem, deste lado onde me encontro à espera, uma certa loucura vai tomando conta de mim dia após dia. Espero que aqueles que têm de compreender, para quem isto faça sentido, compreendam a necessidade que sinto de seguir este percurso. Preciso da vida, e este nunca foi o meu habitat.
A imaginação é inerente à natureza humana, e no fundo talvez eu sempre tenha sido a pessoa mais feliz de todas aquelas que conheço, pois o meu maior sonho sempre foi algo que esteve ao meu alcance, e que agarrei já – regressar à Terra. Quero agora regressar de novo para viver diariamente esse sonho pelo resto da minha vida, ou enquanto me for possível vivê-lo, pois estou certo de que todas as imagens que me irão preencher me irão acompanhar para sempre e acalmar-me deste medo da morte que trago desde criança. Estou certo de ali ir encontrar razões para seguir em frente e viver um outro dia, ideais nos quais consiga acreditar sem esforço, ainda que os desafios que diariamente se nos coloquem não sejam os mesmos a que sempre estive habituado. Preciso de uma causa que me faça lutar.
Quero aprender a viver de coisas simples, ver o mundo como se fosse cego, experimentar sensações reais e deixar este teatro que diariamente faço faz muitos anos já. Comer quando tiver fome, beber quando tiver sede, vestir o que tiver mais à mão, conversar no calor da noite até de madrugada sempre que o assunto for bom, regressar a casa com a cidade a acordar e o trânsito a invadir as ruas, acordar com o canto das peixeiras na Mutamba, revisitar velhos amigos sempre que possível, entrar num grupo e cantar, assar peixes na brasa de noite bebendo uma Cuca a estalar, sentir uma mão aninhada na minha, talvez ser pai um dia... Se tudo isto eu irei ou não conseguir não sei, mas caso o consiga poderei sorrir de verdade, pois fiz da minha vida o sonho que sempre desejei que ela fosse. O meu maior sonho é simples. E assim, quando deitar a cabeça na areia ou entrar no mar de água tépida não me esquecerei jamais de ninguém, pois na minha felicidade os reinventarei a todos, mesmo quando o passado for definitivamente passado e não algo de que ainda se vê o vulto no horizonte. Até muito breve mamã.
(Fotografia: Luanda, Angola, 11 de Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra, Portugal, 25 de Junho de 2007)
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Wednesday, May 30, 2007
O dia em que Deus morreu
O dia em que Deus morreu foi um dia como todos os outros. Nada o fazia prever. As pessoas acordavam e encaminhavam-se ensonadas para o trabalho. Estava um pouco de frio, mas brilhava um sol límpido que estimulava o canto dos pássaros na minha rua. Tomei o pequeno almoço como de costume num café próximo de casa, sozinho, passando os olhos pelo jornal sem que nada me despertasse muito a atenção, e segui para o meu trabalho.
Foi próximo do fim da tarde já que se começaram a ouvir os rumores. Algo tinha acontecido e as pessoas juntavam-se em grupos falando com pesar e uma expressão grave desenhada nos rostos. Procurei saber o que se passava e disseram-me para ligar a rádio na Emissora Nacional, que não ia acreditar, mas que Deus tinha morrido. Regressei ao meu gabinete e assim o fiz. Tinha acabado de sintonizar a estação quando ouço através das ondas de rádio a difusão de uma voz masculina comovida que dizia: “Repito, de acordo com a agência noticiosa Reuters Deus morreu hoje, próximo das três da tarde, quando efectuava uma visita oficial ao Panamá. Ainda não se conhecem os pormenores deste acontecimento, sabendo-se apenas que Deus se sentiu mal e caiu entre a sua comitiva, sendo imediatamente assistido pelos seus Ministros que o conduziram para longe dos olhares curiosos...”
Desliguei a rádio, cortando a meio o discurso do locutor, e dirigi-me à janela para olhar a rua lá em baixo, vendo os mesmos grupos de pessoas comovidas em todos os passeios falando com expressões dolorosas. Todos estariam a comentar a morte do líder, e o tráfego parecia ter abrandado. O sol alaranjado deitava-se já suavemente no horizonte e peguei na minha pasta, enfiando à pressa uns papéis lá dentro. De seguida peguei no casaco e dirigi-me para casa.
Na rua as pessoas olhavam-me com olhos tristes. Todos se olhavam condoídos uns aos outros, como estranhos dando-se os sentimentos recíprocos, e segui pelas ruas com uma calma de que já não havia memória. De resto tudo estava igual, a luz de fim de tarde, a brisa, o cheiro da cidade... Antes de ir para casa passei num self-service para comprar qualquer coisa já feita para levar para o meu jantar. Por trás do balcão havia uma televisão acesa e o empregado, de costas para a porta de entrada, olhava as notícias com a boca aberta de espanto. Pigarreei para chamar a sua atenção para a minha presença. Ele virou-se, encarando-me com a mesma expressão triste dos outros lá fora. No pequeno ecrã colorido podiam ver-se imagens de rostos do mundo inteiro em comovente sofrimento. Massas de gente iam-se concentrando com velas nas praças das cidades. Repórteres do mundo inteiro debatiam-se pelas escassas informações disponíveis...
Levei comigo chop-sui de vaca e arroz chau-chau, e entrado em casa pousei na cozinha os embrulhos e deitei o casaco sobre o sofá. Liguei o televisor no canal noticioso, onde a necessária notícia da morte de Deus, que iria ocupar a humanidade por longo período, se intercalava com outras menores como o número de mortos do dia no Iraque, o reacender de tensões antigas entre a Venezuela e os Estados Unidos, o aumento do número de desempregados no sul europeu... Cortei o som do aparelho, deixando apenas a imagem como companhia na minha sala vazia, e preparei um uísque com três pedras de gelo. Bebi-o junto à janela para a rua, erguendo os olhos para o muro da casa em frente da minha, onde o sol morria no mais belo festival de cor que havia visto. No telhado um gato movia-se preguiçoso, alheio a tudo excepto aos últimos raios de sol.
(Fotografia: alteração cromática, Bilbau - Espanha, Abril de 2007 / Texto: Coimbra - Portugal, 30 de Maio de 2007)
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Foi próximo do fim da tarde já que se começaram a ouvir os rumores. Algo tinha acontecido e as pessoas juntavam-se em grupos falando com pesar e uma expressão grave desenhada nos rostos. Procurei saber o que se passava e disseram-me para ligar a rádio na Emissora Nacional, que não ia acreditar, mas que Deus tinha morrido. Regressei ao meu gabinete e assim o fiz. Tinha acabado de sintonizar a estação quando ouço através das ondas de rádio a difusão de uma voz masculina comovida que dizia: “Repito, de acordo com a agência noticiosa Reuters Deus morreu hoje, próximo das três da tarde, quando efectuava uma visita oficial ao Panamá. Ainda não se conhecem os pormenores deste acontecimento, sabendo-se apenas que Deus se sentiu mal e caiu entre a sua comitiva, sendo imediatamente assistido pelos seus Ministros que o conduziram para longe dos olhares curiosos...”
Desliguei a rádio, cortando a meio o discurso do locutor, e dirigi-me à janela para olhar a rua lá em baixo, vendo os mesmos grupos de pessoas comovidas em todos os passeios falando com expressões dolorosas. Todos estariam a comentar a morte do líder, e o tráfego parecia ter abrandado. O sol alaranjado deitava-se já suavemente no horizonte e peguei na minha pasta, enfiando à pressa uns papéis lá dentro. De seguida peguei no casaco e dirigi-me para casa.
Na rua as pessoas olhavam-me com olhos tristes. Todos se olhavam condoídos uns aos outros, como estranhos dando-se os sentimentos recíprocos, e segui pelas ruas com uma calma de que já não havia memória. De resto tudo estava igual, a luz de fim de tarde, a brisa, o cheiro da cidade... Antes de ir para casa passei num self-service para comprar qualquer coisa já feita para levar para o meu jantar. Por trás do balcão havia uma televisão acesa e o empregado, de costas para a porta de entrada, olhava as notícias com a boca aberta de espanto. Pigarreei para chamar a sua atenção para a minha presença. Ele virou-se, encarando-me com a mesma expressão triste dos outros lá fora. No pequeno ecrã colorido podiam ver-se imagens de rostos do mundo inteiro em comovente sofrimento. Massas de gente iam-se concentrando com velas nas praças das cidades. Repórteres do mundo inteiro debatiam-se pelas escassas informações disponíveis...
Levei comigo chop-sui de vaca e arroz chau-chau, e entrado em casa pousei na cozinha os embrulhos e deitei o casaco sobre o sofá. Liguei o televisor no canal noticioso, onde a necessária notícia da morte de Deus, que iria ocupar a humanidade por longo período, se intercalava com outras menores como o número de mortos do dia no Iraque, o reacender de tensões antigas entre a Venezuela e os Estados Unidos, o aumento do número de desempregados no sul europeu... Cortei o som do aparelho, deixando apenas a imagem como companhia na minha sala vazia, e preparei um uísque com três pedras de gelo. Bebi-o junto à janela para a rua, erguendo os olhos para o muro da casa em frente da minha, onde o sol morria no mais belo festival de cor que havia visto. No telhado um gato movia-se preguiçoso, alheio a tudo excepto aos últimos raios de sol.
(Fotografia: alteração cromática, Bilbau - Espanha, Abril de 2007 / Texto: Coimbra - Portugal, 30 de Maio de 2007)
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Wednesday, May 02, 2007
O movimento perpétuo e colorido das pedras
Vivi das palavras e para elas. Com as palavras construí cenários possíveis e impossíveis, ergui cidades, dei vida a seres que de outro modo não viveriam jamais. As palavras foram sempre o meu mundo, protegeram-me dando-me alternativas. Sempre que os meus olhos e ouvidos me revelavam uma realidade que não era exactamente o que dela eu esperava pegava na caneta e, movendo-a sobre papel, criava com as palavras uma outra opção possível. Enganando-me a mim mesmo tornava a vida viável. Hoje pergunto: que cidades, que estradas, que casas eu construí em tempos? Com que pedras ergui os meus muros?
Agora estou no olho de um furacão. Dei vida ao que não devia viver para além dos limites do racional. A meio do caminho perdi a minha razão, toda a lógica e propósito do que fazia, e sinto-me engolido pelo mundo e à beira de desistir de jogar com as palavras e com as ilusões que me trazem. Dei-lhes primazia quando deveria ter privilegiado o toque; deixei-as curar-me quando deveria ter deixado as feridas abertas por mais tempo às moscas e ao pó; sonhei com a ordem quando deveria ter acolhido o caos. Quero desistir delas e não sei bem como, mas sorrio ao pensar que quando os meus olhos se fecharem elas serão jogadas comigo à terra, e o que o homem semeou o homem sempre há-de colher.
(Fotografia: Pancorbo, Espanha - Abril de 2007/ Texto: Coimbra, Portugal – 2 de Maio de 2007)
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Agora estou no olho de um furacão. Dei vida ao que não devia viver para além dos limites do racional. A meio do caminho perdi a minha razão, toda a lógica e propósito do que fazia, e sinto-me engolido pelo mundo e à beira de desistir de jogar com as palavras e com as ilusões que me trazem. Dei-lhes primazia quando deveria ter privilegiado o toque; deixei-as curar-me quando deveria ter deixado as feridas abertas por mais tempo às moscas e ao pó; sonhei com a ordem quando deveria ter acolhido o caos. Quero desistir delas e não sei bem como, mas sorrio ao pensar que quando os meus olhos se fecharem elas serão jogadas comigo à terra, e o que o homem semeou o homem sempre há-de colher.
(Fotografia: Pancorbo, Espanha - Abril de 2007/ Texto: Coimbra, Portugal – 2 de Maio de 2007)
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Sunday, April 22, 2007
New beginnings.
Life took me so far…
I’ve traveled only to escape my demons, dreamed only to make things easier, but nothing changed anyway. I tried, but failed. There were moments when I missed your tender touch and your hellos! But it doesn’t hurt me anymore, you know? Nothing does, not anymore. I’ve had just about all I could have and yet here I am with my packs done, my eyes already in the distance, ready to leave once more. It’s better that way.
How far…
I still remember when I was just a young boy looking at my parents and wondering. Wondering if I would ever be something like them, if I would ever get to marry too, if I too would ever get to be a father and how my kids would be. I wondered how my own house would look like, and begun drawing it in pieces of paper... I still remember all that although it's all gone. I don't even have a home. But hey, it doesn’t hurt me anymore! I no longer care. Do you believe me? Well, maybe it hurts a little, sometimes…
Just don't say hello to me only when you see me in the city. You know I'll always be around.
(Photography: Ercolano, Italy, February 2006 / Text: Porto, Portugal, April 22nd, 2007)
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I’ve traveled only to escape my demons, dreamed only to make things easier, but nothing changed anyway. I tried, but failed. There were moments when I missed your tender touch and your hellos! But it doesn’t hurt me anymore, you know? Nothing does, not anymore. I’ve had just about all I could have and yet here I am with my packs done, my eyes already in the distance, ready to leave once more. It’s better that way.
How far…
I still remember when I was just a young boy looking at my parents and wondering. Wondering if I would ever be something like them, if I would ever get to marry too, if I too would ever get to be a father and how my kids would be. I wondered how my own house would look like, and begun drawing it in pieces of paper... I still remember all that although it's all gone. I don't even have a home. But hey, it doesn’t hurt me anymore! I no longer care. Do you believe me? Well, maybe it hurts a little, sometimes…
Just don't say hello to me only when you see me in the city. You know I'll always be around.
(Photography: Ercolano, Italy, February 2006 / Text: Porto, Portugal, April 22nd, 2007)
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Tuesday, April 03, 2007
Milagre que fez
Há muitos muitos anos atrás, no princípio do tempo, uma jovem mulher caminhava sozinha pela planície. Estava queimada pelo sol esta mulher, e tão magra que mal tinha sombra! De longe podia-se jurar que a cada instante iria cair, mas seguia arrastando com sofrimento os pés, fazendo levantar quase nenhuma da poeira vermelha em que se movia. Ser frágil, símbolo comovente do sofrimento, fazia de cada novo passo uma vitória. E como estava só esta mulher! Nenhum de nós terá nunca ideia de como estava só! E porquê? Tudo se passou da forma como vou contar.
Alguns dias atrás tinha esta mulher abandonado o local onde habitava devido a uma peste que começou a levar morte a todos os cantos, após a chegada de um forasteiro, e frente ao horror abandonou a aldeia onde o cheiro a corpos inchados ao sol era já insuportável. Nem os animais escapavam, e já não havia mais o que comer! Ela estava grávida, e na tentativa de escapar ilesa fugiu em busca do companheiro que tinha ido caçar lá longe há algumas semanas. Não sabia onde ele estava mas este sempre encontrava o caminho de casa na noite, guiando-se pelo cheiro da fogueira que ela mantinha acesa. Ela pensou poder fazer o mesmo, vasculhando na noite os horizontes com a esperança de alcançar o clarão da vitória, e de dia cheirando o ar na busca do odor a cinza da última fogueira. Vestígios não encontrou, ainda que o que os unia fosse muito forte. Porém, o seu corpo e o seu filho não conseguiriam suportar por muito mais tempo tamanhas provações. Ao menos se encontrasse comida, e água. Mas a terra parecia estar morta também...
Pouco mais de um dia se passou quando aconteceu. Ela parou de repente, e esteve assim imóvel longo tempo, tanto que talvez se tenham passado dias, não me recordo! Olhava só. Cheirava só. Sentia só de um jeito só de sentir. E quando se voltou a mexer foi para se sentar na terra, exausta, debaixo de um sol escaldante. Primeiro sentou-se direita, mas cedo foi deixando o seu corpo inclinar-se e apoiou-se sobre o braço esquerdo com a palma da mão aberta sobre a poeira. Ali estava! Um monumento à força, orgulho de uma qualquer nação! Depois, agarrou com a mão direita um pouco da terra vermelha que a rodeava, que levou à boca para humedecer, e que de seguida esfregou sobre a barriga em movimentos circulares murmurando qualquer coisa. De seguida ergueu essa mesma mão direita ao céu e fez alguns movimentos ritmados que não consegui perceber antes de se deixar cair de lado. Não se mexeu mais. Acabou. Ela nunca viria a saber que a razão de não ter encontrado no horizonte a chama do seu companheiro era que este também já não estava mais no mundo dos vivos. De facto ela era, sem que ela mesma o soubesse, a última sobrevivente de uma espécie, grávida de mais um membro que nunca viria a nascer. Mas quem sabe ela sempre tenha encontrado o seu companheiro noutro lugar, e lá tenham voltado a ser uma família. E eu então voei para longe...
Imediatamente de seguida nuvens escuras começaram a juntar-se sobre aquele lugar e pouco tempo passado chovia uma daquelas chuvas torrenciais que transformou a terra em lama e as covas em charcos. Rios distantes transbordaram margens longínquas e vieram lavar a terra e arrastar os corpos para o mar. Também o corpo da jovem mulher foi arrastado, com a sua criança impossível, mas não para o mar! Quando parou de chover o seu corpo estava aninhado, torcido e coberto de lama, junto a uns altos rochedos próximo da praia. E ali ficou, dia após dia mais submersa no pó, ano após ano sendo visitada pelas ervas, pelas plantas, pelos insectos... Até que uma oliveira ali floresceu, cresceu, ganhou tronco e deu folhas. Esta viria a oferecer frutos que muitos milhões de anos mais tarde viriam a ser colhidos por membros de uma nova espécie que tinha ocupado a terra.
Neste momento eu sei o que provavelmente estão a pensar: uma oliveira com milhões de anos? Acreditem naquilo que digo, sei do que estou a falar. Esta não era apenas uma oliveira, era a oliveira das oliveiras, a primeira, a que nasceu de um monumento à força, ao orgulho de qualquer nação. Esta oliveira era infindável, e na sua casca palavras viriam a ser escritas à faca, juras de amor viriam a ser realizadas. Muitos se viriam a encostar no seu tronco à sombra fresca do Verão e a provar os frutos do seu ventre. Foram milhões de anos, centenas de pessoas que por baixo dos seus ramos passaram, para descansar a ver o mar ou para provar as suas azeitonas, para escrever no tronco o seu nome ou para chorar em paz um amor perdido, para refrescar do calor ou idealizar um novo universo. E a nossa oliveira foi assistindo a tudo isto, de bom grado apreciando a companhia, de bom grado oferecendo os seus frutos, e crescendo, crescendo, até ficar enorme como um sonho.
Até que houve quem viesse um dia com um machado por haver necessidade de lenha para abastecer um farol próximo dali. A lâmina ergueu-se no ar e desferiu um primeiro golpe, de que saiu um líquido vermelho que o lenhador não viu. E eu então voei para longe...
Imediatamente de seguida nuvens escuras começaram a juntar-se sobre aquele lugar e pouco tempo passado chovia uma daquelas chuvas torrenciais que transformou o azul do mar em negro, que fustigou os telhados das casas, apanhando no mar os marinheiros desprevenidos. O escuro chegou mais rápido e foi necessário acender-se a fogueira do farol mais cedo que o habitual. Vários barcos da aldeia tinham sido apanhados de surpresa no mar e era preciso indicar-lhes com o fogo o caminho de casa. Foram vários os que se mobilizaram para a ajuda. Já se ouvia o choro de várias mulheres que, já se imaginando viúvas, se juntaram no alto do morro junto ao farol olhando o horizonte no escuro em busca de sinais, e ajudando a passar de mão em mão a lenha cortada e ainda verde. Na corrente de mulheres que iam passando os toros de madeira umas para as outras havia uma que, sem saber porquê, sentiu algo estranho atravessar-lhe o corpo ao reparar no tom vermelho do pedaço de oliveira que lhe passava pelas mãos. Ergueu-se então, passou a mão direita sobre um útero de oito meses já, o seu, e olhou o horizonte vendo ao longe uma luz que viria momentos mais tarde a descobrir ser a do barco que lhe trazia de volta aos braços o seu marido. Muitas mulheres choraram nos dias que se seguiriam, mas a mulher em questão abraçaria o seu esposo e poucos dias depois daria à luz uma menina, a que chamariam Olívia por referência à oliveira que deu o sinal.
Olívia cresceu sem ter na aldeia a sombra da velha oliveira, sem provar os seus frutos, mas também sem saber que a sua seiva tinha entrado nas mãos gretadas da sua mãe naquela noite distante de vendaval e naufrágios, e que dai tinha passado, através da corrente sanguínea desta, para o seu próprio corpo, para o vermelho do seu próprio sangue! Sabia, porém, que em certo sítio, junto a uns altos rochedos próximo da praia, havia uma oliveira que houvera sido cortada. E sabia também, pois a mãe lho tinha contado, que foi depois de esta ter visto um pedaço de oliveira que sangrava que virou os olhos para o mar e viu o clarão do barco que traria o seu pai para casa. Por isso Olívia muitas vezes se dirigia àquele local nos rochedos para olhar o mar, imaginando que a lenha em sangue que sua mãe tinha visto, que tinha dado o sinal da salvação do seu pai, poderia perfeitamente ser o daquela oliveira antiga que diziam existir ali. E então imaginava que fosse.
O tempo foi passando, e naquele mesmo local, anos mais tarde, Olívia encontrar-se-ia às escondidas com aquele que viria a ser o seu futuro marido, curiosamente um neto do lenhador que tinha derrubado a oliveira, e na ausência de um tronco de árvore onde gravar os seus nomes dentro de um coração, gravaram-nos unidos para sempre na promessa de um beijo. Foram felizes, com todos os seus problemas, tendo tido oito filhos.
No ano de 2007, numa cidade muito longe do local onde tiveram lugar os anteriores acontecimentos, descobri uma descendente directa de Olívia. Era uma jovem mulher de vinte e poucos anos de idade, casada, mas algo infeliz. Não tinha filhos e entre ela e o seu companheiro algo se passava de errado. Ambos tinham no olhar aquela chama que nos faz ter a certeza que são um do outro, mas os silêncios entre ambos faziam daquele um lar triste e muito frio. Dados os afazeres de ambos tinham sempre muito pouco tempo um para o outro, para não falar que por questões profissionais ele frequentemente tinha de viajar por longos períodos, e isso começava a pesar.
Certa noite ele chega a casa e diz-lhe que vai ter de partir por uns dias, dirigindo-se de seguida ao quarto para procurar enfiar à pressa umas quantas coisas dentro de uma mala. Ela mantém-se na sala em silêncio, como monumento à força, querendo não acreditar no que estava a acontecer, mas também sem nada dizer. Poucos minutos depois ele tinha saído de casa, dando-lhe apenas um leve beijo, e então aí ela libertou o que estava dentro e chorou. Chorou à janela para a rua, vendo-o sair do prédio e caminhar na neve até um táxi que o aguardava. E eu então voei para longe...
Imediatamente de seguida nuvens escuras começaram a juntar-se sobre aquele lugar e pouco tempo passado chovia uma daquelas chuvas torrenciais, raramente vista por aquelas bandas e naquela altura do ano, que começou a derreter a neve e a trazer o caos à cidade. Imediatamente escureceu! Ouviam-se carros a buzinar, pessoas a gritar nas ruas, correndo para fugir da chuva e ele, olhando pela janela do táxi, foi testemunha de vários acidentes.
Ela estava em casa ainda à janela, olhando para a chuva que caía lá fora e observando com cuidado a ausência do seu homem. Tinha a mesa posta para um jantar a dois, na qual até uma vela tinha colocado para a surpresa que lhe queria fazer, mas de que ele nem se deu conta. Estava com medo e vasculhava com o olhar os horizontes nebulosos da rua.
Ao mesmo tempo ele, dentro do táxi, no meio do caos do trânsito na chuva, estava desfeito e sem perceber porque tinha saído assim de casa, de forma tão fria. Porquê, se a amava? Procurou olhar uma vez mais para a tempestade lá fora através da janela embaciada do táxi, mas como nada via limpou um pouco a janela com a manga do casaco e aproximou os olhos do vidro, colocando as mãos em concha entre o vidro e os olhos. E o que viu, ou julgou ter visto, era impossível! Uma gigantesca oliveira erguia-se à chuva no meio da avenida! Era impossível! Tinha a altura de três andares e as suas raízes rasgavam o alcatrão da estrada fazendo-o erguer em certos pontos. Ele saiu do carro parado no trânsito para ver se não delirava, e em plena chuva constatou que o gigante ali estava, com os néons coloridos dos reclames das lojas vizinhas reflectidos no verde molhado das suas folhas, no negro brilhante dos seus frutos. E então virou-se para o lado e viu algo improvável entre os arbustos de um jardim próximo, e enfiado em água até aos calcanhares avançou para esse jardim. De seguida regressou para casa...
Enquanto isso ela, inquieta e receosa, ainda se encontrava à janela como antes, mas desta vez tinha na mão a vela que estava sobre a mesa do jantar. Estava com medo de ficar sozinha na escuridão caso a energia falhasse e resolveu acendê-la e trazê-la com ela para a janela, como faroleiro olhando a noite em busca do barco a pôr a salvo. Nisto viu-o correr em direcção à porta do prédio, no exacto instante em que a electricidade tinha falhado. O seu coração disparou! Segundos depois ele entrava em casa e dava com ela na sala, em pé em frente à porta da rua, com a vela acesa na mão. Ele olhou-a sem dizer nada, deixando cair no chão a mala, e ela pousou a vela numa mesa ao lado e agarrou num cobertor que tinha sobre o sofá para pôr sobre os ombros do seu homem que tremia, ensopado da cabeça aos pés. Enquanto fazia isto ele beijou-a, e ela notou com o olhar algo que ele trazia aninhado dentro da mão esquerda, fechada. Ele ergueu então essa mesma mão, oferecendo-lhe o que se encontrava dentro dela. E ela soluçou ao ver a mais bela rosa, vermelha como sangue, que jamais vira na sua vida. Rosa de pleno Inverno! E então disse-lhe, olhando-lhe de frente os olhos, e com um sorriso antigo como o mundo: Vais ser pai! A nossa história não vai ter fim!
E eu então voei para longe...
(Fotografia: alteração cromática, Valladolid – Espanha, 2 de Abril de 2007 / Texto: Coimbra, 3 de Abril de 2007)
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Alguns dias atrás tinha esta mulher abandonado o local onde habitava devido a uma peste que começou a levar morte a todos os cantos, após a chegada de um forasteiro, e frente ao horror abandonou a aldeia onde o cheiro a corpos inchados ao sol era já insuportável. Nem os animais escapavam, e já não havia mais o que comer! Ela estava grávida, e na tentativa de escapar ilesa fugiu em busca do companheiro que tinha ido caçar lá longe há algumas semanas. Não sabia onde ele estava mas este sempre encontrava o caminho de casa na noite, guiando-se pelo cheiro da fogueira que ela mantinha acesa. Ela pensou poder fazer o mesmo, vasculhando na noite os horizontes com a esperança de alcançar o clarão da vitória, e de dia cheirando o ar na busca do odor a cinza da última fogueira. Vestígios não encontrou, ainda que o que os unia fosse muito forte. Porém, o seu corpo e o seu filho não conseguiriam suportar por muito mais tempo tamanhas provações. Ao menos se encontrasse comida, e água. Mas a terra parecia estar morta também...
Pouco mais de um dia se passou quando aconteceu. Ela parou de repente, e esteve assim imóvel longo tempo, tanto que talvez se tenham passado dias, não me recordo! Olhava só. Cheirava só. Sentia só de um jeito só de sentir. E quando se voltou a mexer foi para se sentar na terra, exausta, debaixo de um sol escaldante. Primeiro sentou-se direita, mas cedo foi deixando o seu corpo inclinar-se e apoiou-se sobre o braço esquerdo com a palma da mão aberta sobre a poeira. Ali estava! Um monumento à força, orgulho de uma qualquer nação! Depois, agarrou com a mão direita um pouco da terra vermelha que a rodeava, que levou à boca para humedecer, e que de seguida esfregou sobre a barriga em movimentos circulares murmurando qualquer coisa. De seguida ergueu essa mesma mão direita ao céu e fez alguns movimentos ritmados que não consegui perceber antes de se deixar cair de lado. Não se mexeu mais. Acabou. Ela nunca viria a saber que a razão de não ter encontrado no horizonte a chama do seu companheiro era que este também já não estava mais no mundo dos vivos. De facto ela era, sem que ela mesma o soubesse, a última sobrevivente de uma espécie, grávida de mais um membro que nunca viria a nascer. Mas quem sabe ela sempre tenha encontrado o seu companheiro noutro lugar, e lá tenham voltado a ser uma família. E eu então voei para longe...
Imediatamente de seguida nuvens escuras começaram a juntar-se sobre aquele lugar e pouco tempo passado chovia uma daquelas chuvas torrenciais que transformou a terra em lama e as covas em charcos. Rios distantes transbordaram margens longínquas e vieram lavar a terra e arrastar os corpos para o mar. Também o corpo da jovem mulher foi arrastado, com a sua criança impossível, mas não para o mar! Quando parou de chover o seu corpo estava aninhado, torcido e coberto de lama, junto a uns altos rochedos próximo da praia. E ali ficou, dia após dia mais submersa no pó, ano após ano sendo visitada pelas ervas, pelas plantas, pelos insectos... Até que uma oliveira ali floresceu, cresceu, ganhou tronco e deu folhas. Esta viria a oferecer frutos que muitos milhões de anos mais tarde viriam a ser colhidos por membros de uma nova espécie que tinha ocupado a terra.
Neste momento eu sei o que provavelmente estão a pensar: uma oliveira com milhões de anos? Acreditem naquilo que digo, sei do que estou a falar. Esta não era apenas uma oliveira, era a oliveira das oliveiras, a primeira, a que nasceu de um monumento à força, ao orgulho de qualquer nação. Esta oliveira era infindável, e na sua casca palavras viriam a ser escritas à faca, juras de amor viriam a ser realizadas. Muitos se viriam a encostar no seu tronco à sombra fresca do Verão e a provar os frutos do seu ventre. Foram milhões de anos, centenas de pessoas que por baixo dos seus ramos passaram, para descansar a ver o mar ou para provar as suas azeitonas, para escrever no tronco o seu nome ou para chorar em paz um amor perdido, para refrescar do calor ou idealizar um novo universo. E a nossa oliveira foi assistindo a tudo isto, de bom grado apreciando a companhia, de bom grado oferecendo os seus frutos, e crescendo, crescendo, até ficar enorme como um sonho.
Até que houve quem viesse um dia com um machado por haver necessidade de lenha para abastecer um farol próximo dali. A lâmina ergueu-se no ar e desferiu um primeiro golpe, de que saiu um líquido vermelho que o lenhador não viu. E eu então voei para longe...
Imediatamente de seguida nuvens escuras começaram a juntar-se sobre aquele lugar e pouco tempo passado chovia uma daquelas chuvas torrenciais que transformou o azul do mar em negro, que fustigou os telhados das casas, apanhando no mar os marinheiros desprevenidos. O escuro chegou mais rápido e foi necessário acender-se a fogueira do farol mais cedo que o habitual. Vários barcos da aldeia tinham sido apanhados de surpresa no mar e era preciso indicar-lhes com o fogo o caminho de casa. Foram vários os que se mobilizaram para a ajuda. Já se ouvia o choro de várias mulheres que, já se imaginando viúvas, se juntaram no alto do morro junto ao farol olhando o horizonte no escuro em busca de sinais, e ajudando a passar de mão em mão a lenha cortada e ainda verde. Na corrente de mulheres que iam passando os toros de madeira umas para as outras havia uma que, sem saber porquê, sentiu algo estranho atravessar-lhe o corpo ao reparar no tom vermelho do pedaço de oliveira que lhe passava pelas mãos. Ergueu-se então, passou a mão direita sobre um útero de oito meses já, o seu, e olhou o horizonte vendo ao longe uma luz que viria momentos mais tarde a descobrir ser a do barco que lhe trazia de volta aos braços o seu marido. Muitas mulheres choraram nos dias que se seguiriam, mas a mulher em questão abraçaria o seu esposo e poucos dias depois daria à luz uma menina, a que chamariam Olívia por referência à oliveira que deu o sinal.
Olívia cresceu sem ter na aldeia a sombra da velha oliveira, sem provar os seus frutos, mas também sem saber que a sua seiva tinha entrado nas mãos gretadas da sua mãe naquela noite distante de vendaval e naufrágios, e que dai tinha passado, através da corrente sanguínea desta, para o seu próprio corpo, para o vermelho do seu próprio sangue! Sabia, porém, que em certo sítio, junto a uns altos rochedos próximo da praia, havia uma oliveira que houvera sido cortada. E sabia também, pois a mãe lho tinha contado, que foi depois de esta ter visto um pedaço de oliveira que sangrava que virou os olhos para o mar e viu o clarão do barco que traria o seu pai para casa. Por isso Olívia muitas vezes se dirigia àquele local nos rochedos para olhar o mar, imaginando que a lenha em sangue que sua mãe tinha visto, que tinha dado o sinal da salvação do seu pai, poderia perfeitamente ser o daquela oliveira antiga que diziam existir ali. E então imaginava que fosse.
O tempo foi passando, e naquele mesmo local, anos mais tarde, Olívia encontrar-se-ia às escondidas com aquele que viria a ser o seu futuro marido, curiosamente um neto do lenhador que tinha derrubado a oliveira, e na ausência de um tronco de árvore onde gravar os seus nomes dentro de um coração, gravaram-nos unidos para sempre na promessa de um beijo. Foram felizes, com todos os seus problemas, tendo tido oito filhos.
No ano de 2007, numa cidade muito longe do local onde tiveram lugar os anteriores acontecimentos, descobri uma descendente directa de Olívia. Era uma jovem mulher de vinte e poucos anos de idade, casada, mas algo infeliz. Não tinha filhos e entre ela e o seu companheiro algo se passava de errado. Ambos tinham no olhar aquela chama que nos faz ter a certeza que são um do outro, mas os silêncios entre ambos faziam daquele um lar triste e muito frio. Dados os afazeres de ambos tinham sempre muito pouco tempo um para o outro, para não falar que por questões profissionais ele frequentemente tinha de viajar por longos períodos, e isso começava a pesar.
Certa noite ele chega a casa e diz-lhe que vai ter de partir por uns dias, dirigindo-se de seguida ao quarto para procurar enfiar à pressa umas quantas coisas dentro de uma mala. Ela mantém-se na sala em silêncio, como monumento à força, querendo não acreditar no que estava a acontecer, mas também sem nada dizer. Poucos minutos depois ele tinha saído de casa, dando-lhe apenas um leve beijo, e então aí ela libertou o que estava dentro e chorou. Chorou à janela para a rua, vendo-o sair do prédio e caminhar na neve até um táxi que o aguardava. E eu então voei para longe...
Imediatamente de seguida nuvens escuras começaram a juntar-se sobre aquele lugar e pouco tempo passado chovia uma daquelas chuvas torrenciais, raramente vista por aquelas bandas e naquela altura do ano, que começou a derreter a neve e a trazer o caos à cidade. Imediatamente escureceu! Ouviam-se carros a buzinar, pessoas a gritar nas ruas, correndo para fugir da chuva e ele, olhando pela janela do táxi, foi testemunha de vários acidentes.
Ela estava em casa ainda à janela, olhando para a chuva que caía lá fora e observando com cuidado a ausência do seu homem. Tinha a mesa posta para um jantar a dois, na qual até uma vela tinha colocado para a surpresa que lhe queria fazer, mas de que ele nem se deu conta. Estava com medo e vasculhava com o olhar os horizontes nebulosos da rua.
Ao mesmo tempo ele, dentro do táxi, no meio do caos do trânsito na chuva, estava desfeito e sem perceber porque tinha saído assim de casa, de forma tão fria. Porquê, se a amava? Procurou olhar uma vez mais para a tempestade lá fora através da janela embaciada do táxi, mas como nada via limpou um pouco a janela com a manga do casaco e aproximou os olhos do vidro, colocando as mãos em concha entre o vidro e os olhos. E o que viu, ou julgou ter visto, era impossível! Uma gigantesca oliveira erguia-se à chuva no meio da avenida! Era impossível! Tinha a altura de três andares e as suas raízes rasgavam o alcatrão da estrada fazendo-o erguer em certos pontos. Ele saiu do carro parado no trânsito para ver se não delirava, e em plena chuva constatou que o gigante ali estava, com os néons coloridos dos reclames das lojas vizinhas reflectidos no verde molhado das suas folhas, no negro brilhante dos seus frutos. E então virou-se para o lado e viu algo improvável entre os arbustos de um jardim próximo, e enfiado em água até aos calcanhares avançou para esse jardim. De seguida regressou para casa...
Enquanto isso ela, inquieta e receosa, ainda se encontrava à janela como antes, mas desta vez tinha na mão a vela que estava sobre a mesa do jantar. Estava com medo de ficar sozinha na escuridão caso a energia falhasse e resolveu acendê-la e trazê-la com ela para a janela, como faroleiro olhando a noite em busca do barco a pôr a salvo. Nisto viu-o correr em direcção à porta do prédio, no exacto instante em que a electricidade tinha falhado. O seu coração disparou! Segundos depois ele entrava em casa e dava com ela na sala, em pé em frente à porta da rua, com a vela acesa na mão. Ele olhou-a sem dizer nada, deixando cair no chão a mala, e ela pousou a vela numa mesa ao lado e agarrou num cobertor que tinha sobre o sofá para pôr sobre os ombros do seu homem que tremia, ensopado da cabeça aos pés. Enquanto fazia isto ele beijou-a, e ela notou com o olhar algo que ele trazia aninhado dentro da mão esquerda, fechada. Ele ergueu então essa mesma mão, oferecendo-lhe o que se encontrava dentro dela. E ela soluçou ao ver a mais bela rosa, vermelha como sangue, que jamais vira na sua vida. Rosa de pleno Inverno! E então disse-lhe, olhando-lhe de frente os olhos, e com um sorriso antigo como o mundo: Vais ser pai! A nossa história não vai ter fim!
E eu então voei para longe...
(Fotografia: alteração cromática, Valladolid – Espanha, 2 de Abril de 2007 / Texto: Coimbra, 3 de Abril de 2007)
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Friday, March 30, 2007
Trâmites das despedidas
Lembro o teu sorriso na chuva miudinha de Março, nesta que hoje cai sobre este mundo daqui e que na minha pele quente se confunde com gotas de suor. Queria-te no meu hemisfério, neste lado do mundo que é o meu, mas não estás. Então imagino-te e sento-me no cais com as pernas balançando no vazio sobre as águas calmas e cheias de vida, sorrindo um sorriso de saudade imensa. Uma brisa ocorre visitar-me de vez em quando, trazendo um aroma que imagino que seja o do teu corpo…
Este sou eu para ti, tentando ser maior que o mundo, e com um gesto das mãos recompondo a posição das estrelas no espaço – que pretensão! Olho quem passa, tentando adivinhar-lhes os percursos, como num exercício sábio de me afastar de mim, de me deixar partir deste cais para outro qualquer lugar onde nunca estive, para o tal outro hemisfério de que já ouvi falar tanto mas que desconheço. Amo tanto este lugar que quero partir daqui para não mais regressar.
Hoje apetecia-me conhecer-me, saber como sou por dentro, dissecar-me sob a luz forte de uma mesa de observações, mas isso foi algo que nunca me foi permitido. Desejo uma biopsia das minhas emoções com consequente relatório e indicações terapêuticas.
Canto uma cantiga antiga de embalar, baixinho, tão baixo que nem me dou conta de a murmurar. Aprendi-a do meu pai quando criança e ao lembrá-la sou criança uma vez mais, e sonho, e inclino-me para trás e deito-me assim no cais, com as mãos por trás da cabeça e com a chuva caindo-me directamente na face, nos olhos, ensopando o meu corpo e as roupas que o cobrem, um corpo esquecido que já não me pertence mais. Olho o céu cinzento e a chuva que cai, deitado no calor do amanhecer, com o sorriso que me vai acompanhar desde hoje até ao fim da minha vida. E tudo isto para quê? Não sei bem. Não estou certo do que digo nem sequer se tenho alguma coisa para dizer, mas nunca aprendi a partir, nem os trâmites e legalidades das despedidas, e por isso penso em ti, assim aqui deitado à chuva, para que ninguém que possa por aqui aparecer note que são lágrimas que me escorrem pelo rosto.
Está feito! Tudo o que tenho não quero, tudo o que sou não me pertence mais, e se rio ou se choro é apenas porque sou livre para o fazer! Tudo isto foi escrito numa mensagem que lançei numa garrafa ao mar, para que talvez ela possa encontrar o caminho de casa e dar notícias de que me encontro bem. Sabes, tudo não passa de chuva, e essa não ficará para sempre.
(Fotografia: Luanda – Angola, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra, 30 de Março de 2007)
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Este sou eu para ti, tentando ser maior que o mundo, e com um gesto das mãos recompondo a posição das estrelas no espaço – que pretensão! Olho quem passa, tentando adivinhar-lhes os percursos, como num exercício sábio de me afastar de mim, de me deixar partir deste cais para outro qualquer lugar onde nunca estive, para o tal outro hemisfério de que já ouvi falar tanto mas que desconheço. Amo tanto este lugar que quero partir daqui para não mais regressar.
Hoje apetecia-me conhecer-me, saber como sou por dentro, dissecar-me sob a luz forte de uma mesa de observações, mas isso foi algo que nunca me foi permitido. Desejo uma biopsia das minhas emoções com consequente relatório e indicações terapêuticas.
Canto uma cantiga antiga de embalar, baixinho, tão baixo que nem me dou conta de a murmurar. Aprendi-a do meu pai quando criança e ao lembrá-la sou criança uma vez mais, e sonho, e inclino-me para trás e deito-me assim no cais, com as mãos por trás da cabeça e com a chuva caindo-me directamente na face, nos olhos, ensopando o meu corpo e as roupas que o cobrem, um corpo esquecido que já não me pertence mais. Olho o céu cinzento e a chuva que cai, deitado no calor do amanhecer, com o sorriso que me vai acompanhar desde hoje até ao fim da minha vida. E tudo isto para quê? Não sei bem. Não estou certo do que digo nem sequer se tenho alguma coisa para dizer, mas nunca aprendi a partir, nem os trâmites e legalidades das despedidas, e por isso penso em ti, assim aqui deitado à chuva, para que ninguém que possa por aqui aparecer note que são lágrimas que me escorrem pelo rosto.
Está feito! Tudo o que tenho não quero, tudo o que sou não me pertence mais, e se rio ou se choro é apenas porque sou livre para o fazer! Tudo isto foi escrito numa mensagem que lançei numa garrafa ao mar, para que talvez ela possa encontrar o caminho de casa e dar notícias de que me encontro bem. Sabes, tudo não passa de chuva, e essa não ficará para sempre.
(Fotografia: Luanda – Angola, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra, 30 de Março de 2007)
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Wednesday, March 21, 2007
O homem que amou
Era uma vez um homem! Esse homem, jovem, era muito feio, disforme, com um rosto saído directo de macumba, e nem os seus pais o amaram. Tinha perdido perna esquerda numa mina, e para falar sério os seus pais não foram pais de verdade… lhe fizeram só! No entanto, era possuidor de um enorme coração, esse jovem, pastor de ofício, e capaz de criar sistemas complexos como universos no que tocava a sentimentos e casaliçes. Havia noites que dormia lá fora, olhando estrelas quando as havia, e tentando imaginar como seria um beijo beijado de verdade.
Foram anos passados assim, na mais absoluta ausência de contactos, na mais desértica e gelada rede afectos. Era insuportável! Se Deus tinha lhe criado assim, perguntava-se, porque lhe dera ele emoções, sentimentos? Como era então? Lhe ensinaram a amá-lo na catequese dos padres da missão, mas o que aprendeu foi a odiá-lo com todas as suas forças. Dava tudo para que a sua vida não tivesse de ser assim! Vida assim não valia mesmo...
Uma noite sem estrelas, quente mas tão escura que nem se atreveu a sair para fora, o Diabo procurou-o na sua pobre cubata e, passado o choque inicial e engasgo do pastor, lhe fez a seguinte proposta: “Dou-te o que desejas! Vou-te reinventar de tal forma que vais poder sentir um beijo e tudo o mais que todos os outros sentem. Apenas uma coisa não poderás nunca dizer a ninguém, e isso é que amas! Dizê-lo está-te proibido, vedado, nunca esqueças! Se o disseres perdes-te para sempre no mais desértico deserto onde nunca levarias tuas cabras a pastar! Amanhã volto para ouvir a tua decisão”. E, como tinha aparecido, assim desapareceu no cheiro do lume ainda aceso.
Dia seguinte, exactamente na mesma hora, regressa o Diabo na cubata solteira em busca da decisão de verdade. E a decisão foi que sim, que aceitava. Logo no dia seguinte ao despertar estava cumprido o desígnio, zás! Não mais era coxo, primeiramente, e ao passar em frente ao espelho de latão polido ali estava ele, sem defeito, um príncipe pronto a arrebatar qualquer coração. Um príncipe pastor!
Saiu lá fora sem saber ao certo o que fazer de seguida, mas tamanha era a sua beleza que não passou despercebido no mulherio, e logo na tarde desse mesmo dia, entre ervas altas do capinzal, a promessa foi cumprida! Um beijo foi finalmente dado e recebido, panos tirados à pressa, a carne rasgada na volúpia e no prazer. Aves gritaram na distância, estava selado!
Assim continuou o príncipe pastor ao longo dos dias, dos meses, saltando de lábios em lábios, de corpos em corpos, de leitos de rio em capinzais, até que um dia veio! E esse dia aconteceu parar as suas conquistas, e quem fez tal milagre foi uma jovem de cabelos curtos e estragados, olhos negros fundos, dona de um rosto onde eram visíveis maus-tratos do tempo, da vida e dos trabalhos nas lavras de mandioca exposta aos elementos. Mas o seu coração, ah, esse era de rainha, e os seus lábios de marufo! Prendia mesmo no seu jeito de prender! Seus braços perdiam reacção, seu corpo perdia força de fugir... Assim se apaixonou o pastor!
Encontraram-se em breve na carne de ambos, e nesse enlace nem se deu pelo tempo passar, pelos meses volvidos, as estações, até um dia… E nesse dia tudo o que aconteceu foi estarem de verdade apaixonados um pelo outro, e ele com ela querer casar e fazer filhos. Mas, não sem razão ou propósito, ela pergunta-lhe: Tu amas-me de verdade?
E pronto, e agora é que estava! Que fazer da lembrança já quase esquecida do que poderia não ter sido real mas que realmente aconteceu? Lá veio o cheiro a cinza de fogueira, os gritos dos pássaros... Que fazer do pacto? Como agir? Como recuperar a pureza? Veja-se, se dissesse que a amava perdia-se para sempre, perdendo-a em simultâneo, ela que era o mais precioso da sua pobre vida! Se lhe dissesse que não ou nada lhe respondesse estava a afastá-la por outros caminhos, para outro longe diferente, sentia-o. Que fazer então? Mergulhar nas águas dos espíritos? Tentar os antepassados? Nada! Que fazer então?
Pois eu que aqui vos conto esta estória nunca soube o que aconteceu, o que ele lhe respondeu. Verdade! Já quem me contou estes factos aqui narrados também não soube contar o final, nessa forma que este povo tem de esquecer os maus momentos. Mas isso também pouco importa, pois quando se perde alguma coisa pouco importam então as razões de se ter perdido. Foi só! O resto apenas abre mais a ferida que dói e, neste caso contado aqui, nunca nada esteve ganho, pois fora construído sobre ilusões e falsas esperanças. Mas pode algum criticar? Podes? Mas pensar que tudo isto aconteceu na minha Angola, logo ali numa pequena aldeia lambida de mar, onde nunca nada acontece, aperta este meu velho velho coração!
(Fotografia: Morro da Cruz, Luanda – Angola, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra – Portugal, 21 de Março de 2007)
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Foram anos passados assim, na mais absoluta ausência de contactos, na mais desértica e gelada rede afectos. Era insuportável! Se Deus tinha lhe criado assim, perguntava-se, porque lhe dera ele emoções, sentimentos? Como era então? Lhe ensinaram a amá-lo na catequese dos padres da missão, mas o que aprendeu foi a odiá-lo com todas as suas forças. Dava tudo para que a sua vida não tivesse de ser assim! Vida assim não valia mesmo...
Uma noite sem estrelas, quente mas tão escura que nem se atreveu a sair para fora, o Diabo procurou-o na sua pobre cubata e, passado o choque inicial e engasgo do pastor, lhe fez a seguinte proposta: “Dou-te o que desejas! Vou-te reinventar de tal forma que vais poder sentir um beijo e tudo o mais que todos os outros sentem. Apenas uma coisa não poderás nunca dizer a ninguém, e isso é que amas! Dizê-lo está-te proibido, vedado, nunca esqueças! Se o disseres perdes-te para sempre no mais desértico deserto onde nunca levarias tuas cabras a pastar! Amanhã volto para ouvir a tua decisão”. E, como tinha aparecido, assim desapareceu no cheiro do lume ainda aceso.
Dia seguinte, exactamente na mesma hora, regressa o Diabo na cubata solteira em busca da decisão de verdade. E a decisão foi que sim, que aceitava. Logo no dia seguinte ao despertar estava cumprido o desígnio, zás! Não mais era coxo, primeiramente, e ao passar em frente ao espelho de latão polido ali estava ele, sem defeito, um príncipe pronto a arrebatar qualquer coração. Um príncipe pastor!
Saiu lá fora sem saber ao certo o que fazer de seguida, mas tamanha era a sua beleza que não passou despercebido no mulherio, e logo na tarde desse mesmo dia, entre ervas altas do capinzal, a promessa foi cumprida! Um beijo foi finalmente dado e recebido, panos tirados à pressa, a carne rasgada na volúpia e no prazer. Aves gritaram na distância, estava selado!
Assim continuou o príncipe pastor ao longo dos dias, dos meses, saltando de lábios em lábios, de corpos em corpos, de leitos de rio em capinzais, até que um dia veio! E esse dia aconteceu parar as suas conquistas, e quem fez tal milagre foi uma jovem de cabelos curtos e estragados, olhos negros fundos, dona de um rosto onde eram visíveis maus-tratos do tempo, da vida e dos trabalhos nas lavras de mandioca exposta aos elementos. Mas o seu coração, ah, esse era de rainha, e os seus lábios de marufo! Prendia mesmo no seu jeito de prender! Seus braços perdiam reacção, seu corpo perdia força de fugir... Assim se apaixonou o pastor!
Encontraram-se em breve na carne de ambos, e nesse enlace nem se deu pelo tempo passar, pelos meses volvidos, as estações, até um dia… E nesse dia tudo o que aconteceu foi estarem de verdade apaixonados um pelo outro, e ele com ela querer casar e fazer filhos. Mas, não sem razão ou propósito, ela pergunta-lhe: Tu amas-me de verdade?
E pronto, e agora é que estava! Que fazer da lembrança já quase esquecida do que poderia não ter sido real mas que realmente aconteceu? Lá veio o cheiro a cinza de fogueira, os gritos dos pássaros... Que fazer do pacto? Como agir? Como recuperar a pureza? Veja-se, se dissesse que a amava perdia-se para sempre, perdendo-a em simultâneo, ela que era o mais precioso da sua pobre vida! Se lhe dissesse que não ou nada lhe respondesse estava a afastá-la por outros caminhos, para outro longe diferente, sentia-o. Que fazer então? Mergulhar nas águas dos espíritos? Tentar os antepassados? Nada! Que fazer então?
Pois eu que aqui vos conto esta estória nunca soube o que aconteceu, o que ele lhe respondeu. Verdade! Já quem me contou estes factos aqui narrados também não soube contar o final, nessa forma que este povo tem de esquecer os maus momentos. Mas isso também pouco importa, pois quando se perde alguma coisa pouco importam então as razões de se ter perdido. Foi só! O resto apenas abre mais a ferida que dói e, neste caso contado aqui, nunca nada esteve ganho, pois fora construído sobre ilusões e falsas esperanças. Mas pode algum criticar? Podes? Mas pensar que tudo isto aconteceu na minha Angola, logo ali numa pequena aldeia lambida de mar, onde nunca nada acontece, aperta este meu velho velho coração!
(Fotografia: Morro da Cruz, Luanda – Angola, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra – Portugal, 21 de Março de 2007)
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Friday, March 16, 2007
Cœur trouvé
Je pense à toi à tous mes voyages, mon cœur, et à tous les voyages que nous ferons ensemble. Tu me manques nécessairement en tous les aspects de ma vie, de mon quotidien, et après t’avoir connu je n’existe que pour toi et pour te faire sourire. Quand tu n’est pas là je t’invente à chaque instant chez moi. Et à chaque instant j’écoute ta voix douce et j’imagine le parfum que ton corps exhale ! Tu es mon nord, mon océan placide et chaud. Il n’a pas des mots pour te dire ce que je veux…
Dans les lieux les plus absurdes et impossibles, nuit et jour, mon chemin ne se fera pas seul ! Je te promets que pour toute ma vie, en toutes mes voyages, je ne cesserait jamais de regarder les étoiles et chercher dans la nuit la lumière que m’indiquerait un chemin sûr pour ma maison et pour ta peau ! Mon retour vers tes bras se fera toujours parce que mon cœur n’est pas perdu non plus ! Il repose doucement dans tes mains.
(Photographie : Sangano, Bengo – Angola, 13 de Février de 2007 / Texte : Coimbra – Portugal, 16 de Mars de 2007)
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Dans les lieux les plus absurdes et impossibles, nuit et jour, mon chemin ne se fera pas seul ! Je te promets que pour toute ma vie, en toutes mes voyages, je ne cesserait jamais de regarder les étoiles et chercher dans la nuit la lumière que m’indiquerait un chemin sûr pour ma maison et pour ta peau ! Mon retour vers tes bras se fera toujours parce que mon cœur n’est pas perdu non plus ! Il repose doucement dans tes mains.
(Photographie : Sangano, Bengo – Angola, 13 de Février de 2007 / Texte : Coimbra – Portugal, 16 de Mars de 2007)
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Monday, March 12, 2007
Matéria de Sonhos
Enquanto dançavas viraste-te! Toquei de leve, apressadamente, com a ponta dos meus dedos nos teus lábios e aproximei o meu rosto do teu. Estremeceste, imediatamente os teus lábios me procurando numa sofreguidão de anos e se unindo aos meus no que se poderia reconhecer como um beijo mas que estava muito para além dessa palavra escrita ou dita. Cravaste as tuas unhas nos meus ombros, rasgaste-me o peito vazio e o universo entrou e ficou ali suspenso, espantado e tonto, tentando reconhecer os contornos e as sombras que a proximidade do teu corpo fazia no meu, coberto por um fato azul de estrelas! O meu corpo estava suspenso de uma corda elástica de um tecto de nuvens e, virado para cima, a minha cabeça pendia solta para trás, uma mão tua segurando-a na nuca para que não se perdesse para sempre e um sorriso presente nos meus olhos que fitavam os teus com paixão.
As luzes fortes estavam apontadas para nós, e centenas de pessoas olhavam-nos com a respiração suspensa à espera do momento final. Subitamente milhares de papeis coloridos soltaram-se do céu e choveram sobre nós, tambores fazendo-se ouvir, e a massa humana começou a gritar à medida em que erguias na mão direita um justo e reluzente punhal prateado. Ouviam-se palmas de toda a assistência e os cavalos, inquietos, erguiam-se sobre as patas traseiras. Nas jaulas os leões rugiam e moviam-se inconstantes junto às grades, de um lado para o outro. A chuva colorida cobria tudo isto por completo dando à arena um ambiente de festa geral. Palhaços giravam à nossa volta, lá em baixo, na terra, com sapatos enormes e narizes encarnados. E no meio de tudo isto, no exacto eixo da festa, o teu punhal de noite e lua desceu rápido na minha direcção.
Aí, nesse preciso instante, a multidão desapareceu e subitamente estávamos sós, no silêncio, sem luzes, sem confetti coloridos, sem festa... Só tu e eu. O tempo como que passou a existir de uma outra forma para ti e para mim. Vi ainda as jaulas abrirem-se e as feras saírem mansas para a arena, sem pressas, tudo terminado, já sem medo no olhar. Os cavalos acalmaram e olhavam para nós, à espera. E essa tua mão descia ainda na minha direcção, em câmara lenta, dando-me todo o tempo para sentir o teu cheiro a sândalo, para imaginar o teu sabor a montanhas e a neve, para me lembrar de tudo o que haviamos dito ao ouvido um do outro. E vi mais, vi os teus olhos grandes e escuros sorrirem para mim, e sorri-te de volta num gesto extremo de máxima paixão, de urgente súplica, com o brilho da faca já rente ao rosto que te fitava.
Nasceram então flores brancas e amarelas na arena no instante em que o teu punhal de lua cumpriu o gesto do teu braço e cortou finalmente, de um só golpe brutal, a corda que me retia prisioneiro do Inverno. Libertaste-me finalmente para ti e para a Primavera que me trazias numa cesta decorada de margaridas. As luzes acenderam-se todas de seguida, no momento em que nos prendíamos num beijo tantas vezes imaginado, e a multidão, reaparecida do vazio, aplaudia-nos agora de pé enquanto nós, de mãos dadas, agradecíamos com vénias e sorrisos.
Depois disto tu e eu, exaustos, finalmente adormecemos na nossa cama desarrumada de lençóis azuis escuros para descansar depois de amor tão intenso, em busca de nova matéria de sonhos. Antes deitei ainda a minha mão ao chão para apanhar o meu travesseiro que tinha caído e desliguei o candeeiro pequeno, afastando na altura o desejo que sentia de fumar um cigarro lá fora, a olhar as estrelas de Março. E baixinho sussurrei: "Como te amo!"
(Fotografia: Paris, Dezembro de 2006 / Texto: Coimbra, 10 de Março de 2007)
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As luzes fortes estavam apontadas para nós, e centenas de pessoas olhavam-nos com a respiração suspensa à espera do momento final. Subitamente milhares de papeis coloridos soltaram-se do céu e choveram sobre nós, tambores fazendo-se ouvir, e a massa humana começou a gritar à medida em que erguias na mão direita um justo e reluzente punhal prateado. Ouviam-se palmas de toda a assistência e os cavalos, inquietos, erguiam-se sobre as patas traseiras. Nas jaulas os leões rugiam e moviam-se inconstantes junto às grades, de um lado para o outro. A chuva colorida cobria tudo isto por completo dando à arena um ambiente de festa geral. Palhaços giravam à nossa volta, lá em baixo, na terra, com sapatos enormes e narizes encarnados. E no meio de tudo isto, no exacto eixo da festa, o teu punhal de noite e lua desceu rápido na minha direcção.
Aí, nesse preciso instante, a multidão desapareceu e subitamente estávamos sós, no silêncio, sem luzes, sem confetti coloridos, sem festa... Só tu e eu. O tempo como que passou a existir de uma outra forma para ti e para mim. Vi ainda as jaulas abrirem-se e as feras saírem mansas para a arena, sem pressas, tudo terminado, já sem medo no olhar. Os cavalos acalmaram e olhavam para nós, à espera. E essa tua mão descia ainda na minha direcção, em câmara lenta, dando-me todo o tempo para sentir o teu cheiro a sândalo, para imaginar o teu sabor a montanhas e a neve, para me lembrar de tudo o que haviamos dito ao ouvido um do outro. E vi mais, vi os teus olhos grandes e escuros sorrirem para mim, e sorri-te de volta num gesto extremo de máxima paixão, de urgente súplica, com o brilho da faca já rente ao rosto que te fitava.
Nasceram então flores brancas e amarelas na arena no instante em que o teu punhal de lua cumpriu o gesto do teu braço e cortou finalmente, de um só golpe brutal, a corda que me retia prisioneiro do Inverno. Libertaste-me finalmente para ti e para a Primavera que me trazias numa cesta decorada de margaridas. As luzes acenderam-se todas de seguida, no momento em que nos prendíamos num beijo tantas vezes imaginado, e a multidão, reaparecida do vazio, aplaudia-nos agora de pé enquanto nós, de mãos dadas, agradecíamos com vénias e sorrisos.
Depois disto tu e eu, exaustos, finalmente adormecemos na nossa cama desarrumada de lençóis azuis escuros para descansar depois de amor tão intenso, em busca de nova matéria de sonhos. Antes deitei ainda a minha mão ao chão para apanhar o meu travesseiro que tinha caído e desliguei o candeeiro pequeno, afastando na altura o desejo que sentia de fumar um cigarro lá fora, a olhar as estrelas de Março. E baixinho sussurrei: "Como te amo!"
(Fotografia: Paris, Dezembro de 2006 / Texto: Coimbra, 10 de Março de 2007)
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Friday, March 02, 2007
At the end of it all
Each time I went away the world collapsed and came together all the same! And yet I loved you, as I went about the ruins in my way, even the one's I helped creating. Things were not easy, despite of what people used to think. Conditions sometimes were harsh, but still you made everything worthwhile with that smile of yours, with that way you had of reaching me as if urging me to touch you, as if I was the most precious element on earth. Here you have me, you used to wisper in my ear. Now I think of it I have to admit that at the end of it all this world is not so bad! Even if everything fails I’ll still can fool myself and dream of getting you back... or at least keep close the memory of those warm days I have held you in my arms for some moments, when you approached me from behind and caressed my bruised lonely soul with your tender sweet touch. Yes I'm still here! Yes I'm waiting still! But I just don't know anymore where to go, or what I'm waiting for. The only thing left for me to do now is remember, I think, because right at the end of it all we had each other and nothing, never, can take that away...
(Photography: Luanda, Angola, February 11th 2007 / Text: Coimbra, Portugal, March 2nd 2007)
(Photography: Luanda, Angola, February 11th 2007 / Text: Coimbra, Portugal, March 2nd 2007)
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Tuesday, February 20, 2007
Regresso a Casa
Foi como se me tivesse atirado num impulso de um palco para uma multidão de fãs, e centenas de mãos me amparassem a queda e me passassem de umas às outras fazendo o meu corpo viajar rápido e nele deixando a humidade e o cheiro dessas mesmas mãos, desses mesmos corpos. Foi como se viajasse num curso de água sereno que de repente desaguasse num rio turbulento. Depois do medo veio um prazer imenso! O enjoo rapidamente dando lugar ao inebriamento dos sentidos embriaguei-me daqueles cheiros, daqueles sabores, e desejei que a minha pele não mais se descolasse de outras peles encostadas na minha, que os meus pés descalços não mais fossem lavados do pó vermelho, que dos meus bolsos não mais fosse tirada a areia que no Sangano os invadiu. De manhã olhava Luanda na bruma quente, de cuca na mão, incerto, e logo os belíssimos pregões das vendedoras de peixe me chamavam o olhar para baixo, para a rua, e me faziam desejar comprar cacusso ainda sem saber se queria realmente fazê-lo. Depois do medo veio esse prazer imenso! E nas ruas onde tudo se encontra a vontade de não querer encontrar nada mais do que o que se tem, e a paz dessa constatação, olhando os passos lentos sob o calor abrasador das ruas sem sombra. E o que comi, e o que bebi na terra: uma outra realidade a construir-se no meu corpo com o que me dava a provar, outros povos a crescerem dentro de mim na forma como por mim passavam na rua, e falavam, e se mexiam, e se vestiam e me sorriam. Angola impõe-se, e a mão de que pensei querer escapar desejo agora que se feche sobre mim em definitivo para que não mais ouse desejar a liberdade de partir dali para outro lugar qualquer.
(Fotografia: Luanda, Janeiro de 2007 / Texto: Coimbra, Fevereiro de 2007)
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(Fotografia: Luanda, Janeiro de 2007 / Texto: Coimbra, Fevereiro de 2007)
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Sunday, January 07, 2007
Away from home # 8
A Missão
ONTEM
Nasci em Angola no dia 23 de Setembro de 1973, numa cidadezinha do interior, capital do Kwanza Norte, chamada Salazar. Angola era uma das colónias portuguesas em África, e vivia já desde os inícios dos anos 60 uma situação tensa e violenta, com grupos organizados lutando supostamente pela independência e auto-determinação daquele país, tendo tido início com os levantamentos e massacres da população branca e alguns grupos locais, como os Ovimbundo, por parte de membros da União dos Povos de Angola (UPA). E o Kwanza Norte, terra de café, foi uma das regiões mais massacradas no território angolano, pois era muito cobiçada e muito rica em vários produtos e minerais.
Em Novembro de 1975 Angola alcança finalmente a independência desejada. Começa então um outro caos, uma nova forma de inferno, com a queda, um após outro, dos ícones coloniais numa guerra civil que viria a durar décadas, a minar grande parte do território e a custar a vida a milhares de pessoas. A cidadezinha onde eu tinha nascido, Salazar, toma então o nome de N’Dalatando, abandonando o nome do odioso ditador António de Oliveira Salazar. Eu tinha pouco mais de dois anos de idade quando, com os meus pais e restante família, espalhados todos um pouco por toda aquela zona do Kwanza Norte e pela capital, Luanda, fui obrigado pelas armas a abandonar a minha casa, o sítio onde tinha crescido, Quiculungo. Ouvi contar que era já demasiado tarde para tentar chegar de carro à capital, a Luanda, e procurar aí alguma da segurança que já não existia no interior norte, ocupado pela Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) apoiada pelos Estados Unidos. Ouvi contar, porque não me lembro. As estradas estavam já tomadas por guerrilheiros da FNLA, geralmente hostis às populações portuguesas, e a segurança da capital, nas mãos do Movimento Popular para a Libertação Angola (MPLA), com o apoio da URSS, seria impossível já de alcançar. Era tarde demais. O abandono de Quiculungo deveria ter sido antecipado, mas as pessoas nunca quiseram acreditar que se chegaria àquele ponto. Então, naquele distante mês de Janeiro de 1976, debaixo do som dos tiros disparados na rua, do choro, dos gritos, fizeram-se malas à pressa e integrámos colunas de automóveis e camiões em êxodo pelas estradas em direcção ao norte, à fronteira com o Zaire, sem protecção alguma pois as tropas portuguesas tinham abandonado Angola logo após a independência. Estávamos entregues a nós mesmos, e aos cartões de membro de todos os partidos nacionais que geralmente as pessoas tinham numa tentativa de acender velas a Deus e ao Diabo, e nem todos os membros da minha família sabiam uns dos outros. A guerra tinha-nos chegado a todos subitamente, sem pré-aviso, e apanhou-nos nos hábitos diários. Cada um fez então o que pôde, o que tinha de fazer, independentemente do que sentia por dentro. Isto disseram-me, porque não me recordo. A sobrevivência foi procurada por todos os meios disponíveis, esse é um dos milagres do Homem. Isto ninguém me disse, e só hoje o posso pensar.
Dias mais tarde eram milhares dentro de viaturas, sujos, com fome, cansados, com medo, demasiado confusos, só à espera de autorização das tropas zairenses para atravessar a fronteira para aquele país vizinho e abandonar de vez toda a vida que aconteceu em Angola. E nem todos sabiam de todos, estando perdidos muitos uns dos outros. Ouvi contar que eu estava muito doente nessa altura. Ouvi contar que poucos davam o que quer que fosse por mim, pela minha sobrevivência. Mas a autorização zairense lá veio, em parte pelo esforço de organizações humanitárias, e o êxodo prosseguiu para o Zaire. Para todos os membros da minha família esse foi o adeus definitivo a Angola, pois nunca mais nenhum regressaria.
Já em Kinshasa, embarcámos num Boing 747 com destino a Lisboa. Que estranho ajuntamento de seres vivos deve esse ter sido! Que desfile de miséria e tristeza! Certo dia, dai a muitos anos, vendo um noticiário sobre a guerra na Bósnia e a miséria e fuga de populações, ouviria a minha avó dizer baixinho “e pensar que passámos por aquilo, meu Deus!” E isso far-me-ia na altura recordar o que felizmente não poderia recordar por disso não ter memoria, mas isso será mais à frente.
No aeroporto em Kinshasa o meu avô materno perante a informação de que não poderia embarcar a sua pequena cadela, a Riquita, e a perspectiva de ter de a abandonar ali, não se preocupou muito, não lutou, não se exaltou, não pediu nada mais a ninguém pois estava exausto. Simplesmente a enfiou dentro de um cesto de palha e lá entrou ele com a sua cadela no avião! E ela fez uma viagem de avião de muitas horas em silêncio, sem ninguém se aperceber, apenas com a ponta do nariz de fora para respirar. Naquele caos até os animais parecem ter ganho consciência dos perigos a que estavam expostos, e as pessoas estavam cansadas demais para travar pequenas e estúpidas batalhas. Isto eu ouvi contar, porque não me lembro de nada a não ser de brincar com a Riquita já em Portugal.
Depois disto vem então a parte de que me lembro! E o que me lembro é de sentir um forte cheiro a borracha na aterragem em Lisboa. Tinha dois anos e dois meses sensivelmente, mas recordo já. Estava um dia com pouca luz, cinzento, e estava muito frio para as roupas que trazíamos vestidas. Era Inverno em Portugal e havia muita gente junta. Era o regresso dos “retornados”! Eu nunca fui um retornado, nem a minha mãe, pois nunca daqui tínhamos partido para Angola para mais tarde voltarmos. Eu vim de lá, simplesmente! Seria um “vindo”, quando muito, se me quisessem mesmo classificar. Mas não me quiseram classificar. O que as autoridades portuguesas quiseram mesmo, e fizeram, foi internar-me no hospital Curry Cabral durante tempos que pareciam não ter fim. E estava impedido de ver os meus pais ou quem quer que fosse. Os meus únicos contactos eram com médicos, enfermeiras, e tantas outras crianças que por ali andavam, nuas por vezes, vestidas outras. Nunca deixei que me fizessem andar nu, e recordo hoje com carinho a Dona Madalena, não sei se uma enfermeira se uma auxiliar, que me dava todas as atenções que podia. Nunca mais a voltei a ver, mas foi ela quem raspou um pouco da tinta branca do interior das janelas do meu quarto do rés-do-chão, para que os meus pais pudessem espreitar de vez em quando do jardim e confirmar a minha recuperação, que estava vivo, sei lá! A minha cama tinha grades em volta, e o meu travesseiro era um urso amarelo-torrado de pelúcia, que mantive até aos meus onze anos de idade, já velhinho e usado.
Recordo o dia em que tive alta. Um casal esperava-me no jardim do Curry Cabral. Não me recordo bem dela, mas ele tinha, se a memória não me pregou aqui uma partida, um blusão de pele castanho. Eram os meus pais, e eu perguntei-lhes imediatamente se íamos à praia. Era Inverno. Despedi-me da Dona Madalena, que me deu algo doce para eu comer no caminho para sempre longe dela. Claro que continuei muito doente, claro que durante meses todos continuaram a não dar nada por mim, claro que era “pele e osso”, claro que não comia nada, claro que até me levaram a uma curandeira africana em Lisboa que disse que eu trazia o mal. Mas é escusado dizer que aqui estou! No entanto, tudo isto se passou há muito tempo já. Foi já ontem e hoje é diferente.
HOJE
Tenho 33 anos. Após a separação dos meus pais, tinha eu onze anos de idade, vim viver para Coimbra, onde prossegui os meus estudos e onde me licenciei por fim em Antropologia. Porquê Antropologia? Teve alguma influência o meu passado, o passado dos meus pais, tios e avós, nesta opção? A aventura africana da minha família seduzia-me nas aulas de Povos e Culturas de África? Não! Absolutamente nenhuma. Licenciei-me com uma tese sobre arte e etnografia africanas como o podia ter feito com uma sobre o uso de padrões de xadrez nas roupas tradicionais das populações que vivem da pesca em Portugal.
Desde que vim para Portugal vivi em vários sítios. Primeiro em Lisboa, depois na Nazaré, onde comecei os meus estudos, vindo mais tarde para Coimbra, onde prossegui esses estudos e os conclui. Passei depois pela Lousã, pelo Porto, uma passagem por Londres, novamente Porto e, no fim, de volta a Coimbra. A Angola nunca mais regressei.
Em Coimbra chego a trabalhar durante alguns meses com jovens que viriam de Angola para Portugal, vítimas de minas terrestres, para serem submetidos nos hospitais da Universidade a intervenções cirúrgicas aos membros perdidos. Também eles me contaram de Angola, também eles me deram notícias e me fizeram sonhar.
A 27 de Outubro de 2006 falece o meu avô materno, o tal que trouxe a cadela num cesto farto de conversas, e por coincidência nesse mesmo mês, dias depois, na sequência de um contacto com uma agencia de consultoria internacional sediada em Bruxelas, fui contratado como especialista para Angola numa missão da Comissão Europeia nos PALOP. Já não pude dar essa mesma notícia ao meu avô que tinha feito a viagem para Angola em tempos muito mais difíceis.
AMANHÃ
Ao fim de 31 anos vou finalmente regressar! Não sei bem a quê eu regresso, se às origens, se a casa, se à terra. Não consigo ainda compreender o que me vai acontecer. No entanto, e por mais que não o consiga explicar, sinto que é algo demasiado grande o que está para vir. Assusta-me e chama por mim ao mesmo tempo, de uma forma a que eu nunca conseguiria resistir mesmo que quisesse.
Dia 17 de Janeiro de 2007, às 22.15 h, embarco num voo da TAP que me vai levar na minha primeira viagem a outro continente. E que outro continente! Aquele onde um dia fui desejado e nasci. No dia seguinte, às 7.00 h da manhã, com o nascer do dia, as portas desse avião vão ser abertas e há-de chegar o momento em que me levantarei do meu lugar e me encaminharei para a saída. Tenho a certeza de que me irei emocionar, não é possível pensar que possa ser de outra forma. E lá chegará o instante em que, já fora da influência do ar condicionado do avião, sentirei após mais de três décadas de ausência o efeito do ar quente e húmido de Angola. Vou chegar ao nascer de mais um dia, em plena estação das chuvas, e pode ser ilusão mas sinto verdadeiramente que só lá me poderei finalmente conhecer, sentir-me completo, adulto, descodificado.
Não sei ainda se ficarei apenas em Luanda, onde já sei ir ficar a residir nas Ingombotas, ou se irei fazer incursões pelos arredores ou por províncias do interior. Não estarei em férias, e sim numa missão, com um trabalho concreto, com contactos a fazer, com reuniões a efectuar, com relatórios a escrever, com conclusões a tirar, com discussões a empreender. Mas todos aqueles que me contrataram, que contam com o meu desempenho e desenvoltura, com os meus conhecimentos e contactos no âmbito desta missão da Comissão Europeia, e que sobre os nossos relatórios e conclusões irão posteriormente basear a sua intervenção nos PALOP’s, a estratégia europeia para África, não sabem um pequeno detalhe sobre mim, algo que eu não referi no Curriculum. É que também eu nessa missão terei uma agenda própria, uma missão paralela, algo que só a mim diz respeito. Tentar saber quanto de mim é dali e se me será possível depois regressar. Tenho também a missão de me tentar conhecer a mim próprio e por isso mesmo irei uns dias antes do coordenador.
Durante anos sonhei várias vezes um mesmo sonho: estava em Luanda, sozinho na praia pela primeira vez; tinha à minha frente o Atlântico sul, quente, pacífico; estava sol, haviam palmeiras na praia, e eu começava a correr pela areia em direcção ao mar azul, e ia-me despindo em andamento e atirando as roupas pelo caminho; até que sentia nos pés, e depois nas pernas, e depois no tronco e finalmente no rosto o mar de Luanda; e então vinha à superfície respirar, e em silêncio gritava de felicidade. Falta pouco, isso é já amanhã.
(Fotografia: Paris, 9 de Dezembro de 2006 / Texto: Coimbra, 28 de Novembro de 2006)
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Nasci em Angola no dia 23 de Setembro de 1973, numa cidadezinha do interior, capital do Kwanza Norte, chamada Salazar. Angola era uma das colónias portuguesas em África, e vivia já desde os inícios dos anos 60 uma situação tensa e violenta, com grupos organizados lutando supostamente pela independência e auto-determinação daquele país, tendo tido início com os levantamentos e massacres da população branca e alguns grupos locais, como os Ovimbundo, por parte de membros da União dos Povos de Angola (UPA). E o Kwanza Norte, terra de café, foi uma das regiões mais massacradas no território angolano, pois era muito cobiçada e muito rica em vários produtos e minerais.
Em Novembro de 1975 Angola alcança finalmente a independência desejada. Começa então um outro caos, uma nova forma de inferno, com a queda, um após outro, dos ícones coloniais numa guerra civil que viria a durar décadas, a minar grande parte do território e a custar a vida a milhares de pessoas. A cidadezinha onde eu tinha nascido, Salazar, toma então o nome de N’Dalatando, abandonando o nome do odioso ditador António de Oliveira Salazar. Eu tinha pouco mais de dois anos de idade quando, com os meus pais e restante família, espalhados todos um pouco por toda aquela zona do Kwanza Norte e pela capital, Luanda, fui obrigado pelas armas a abandonar a minha casa, o sítio onde tinha crescido, Quiculungo. Ouvi contar que era já demasiado tarde para tentar chegar de carro à capital, a Luanda, e procurar aí alguma da segurança que já não existia no interior norte, ocupado pela Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) apoiada pelos Estados Unidos. Ouvi contar, porque não me lembro. As estradas estavam já tomadas por guerrilheiros da FNLA, geralmente hostis às populações portuguesas, e a segurança da capital, nas mãos do Movimento Popular para a Libertação Angola (MPLA), com o apoio da URSS, seria impossível já de alcançar. Era tarde demais. O abandono de Quiculungo deveria ter sido antecipado, mas as pessoas nunca quiseram acreditar que se chegaria àquele ponto. Então, naquele distante mês de Janeiro de 1976, debaixo do som dos tiros disparados na rua, do choro, dos gritos, fizeram-se malas à pressa e integrámos colunas de automóveis e camiões em êxodo pelas estradas em direcção ao norte, à fronteira com o Zaire, sem protecção alguma pois as tropas portuguesas tinham abandonado Angola logo após a independência. Estávamos entregues a nós mesmos, e aos cartões de membro de todos os partidos nacionais que geralmente as pessoas tinham numa tentativa de acender velas a Deus e ao Diabo, e nem todos os membros da minha família sabiam uns dos outros. A guerra tinha-nos chegado a todos subitamente, sem pré-aviso, e apanhou-nos nos hábitos diários. Cada um fez então o que pôde, o que tinha de fazer, independentemente do que sentia por dentro. Isto disseram-me, porque não me recordo. A sobrevivência foi procurada por todos os meios disponíveis, esse é um dos milagres do Homem. Isto ninguém me disse, e só hoje o posso pensar.
Dias mais tarde eram milhares dentro de viaturas, sujos, com fome, cansados, com medo, demasiado confusos, só à espera de autorização das tropas zairenses para atravessar a fronteira para aquele país vizinho e abandonar de vez toda a vida que aconteceu em Angola. E nem todos sabiam de todos, estando perdidos muitos uns dos outros. Ouvi contar que eu estava muito doente nessa altura. Ouvi contar que poucos davam o que quer que fosse por mim, pela minha sobrevivência. Mas a autorização zairense lá veio, em parte pelo esforço de organizações humanitárias, e o êxodo prosseguiu para o Zaire. Para todos os membros da minha família esse foi o adeus definitivo a Angola, pois nunca mais nenhum regressaria.
Já em Kinshasa, embarcámos num Boing 747 com destino a Lisboa. Que estranho ajuntamento de seres vivos deve esse ter sido! Que desfile de miséria e tristeza! Certo dia, dai a muitos anos, vendo um noticiário sobre a guerra na Bósnia e a miséria e fuga de populações, ouviria a minha avó dizer baixinho “e pensar que passámos por aquilo, meu Deus!” E isso far-me-ia na altura recordar o que felizmente não poderia recordar por disso não ter memoria, mas isso será mais à frente.
No aeroporto em Kinshasa o meu avô materno perante a informação de que não poderia embarcar a sua pequena cadela, a Riquita, e a perspectiva de ter de a abandonar ali, não se preocupou muito, não lutou, não se exaltou, não pediu nada mais a ninguém pois estava exausto. Simplesmente a enfiou dentro de um cesto de palha e lá entrou ele com a sua cadela no avião! E ela fez uma viagem de avião de muitas horas em silêncio, sem ninguém se aperceber, apenas com a ponta do nariz de fora para respirar. Naquele caos até os animais parecem ter ganho consciência dos perigos a que estavam expostos, e as pessoas estavam cansadas demais para travar pequenas e estúpidas batalhas. Isto eu ouvi contar, porque não me lembro de nada a não ser de brincar com a Riquita já em Portugal.
Depois disto vem então a parte de que me lembro! E o que me lembro é de sentir um forte cheiro a borracha na aterragem em Lisboa. Tinha dois anos e dois meses sensivelmente, mas recordo já. Estava um dia com pouca luz, cinzento, e estava muito frio para as roupas que trazíamos vestidas. Era Inverno em Portugal e havia muita gente junta. Era o regresso dos “retornados”! Eu nunca fui um retornado, nem a minha mãe, pois nunca daqui tínhamos partido para Angola para mais tarde voltarmos. Eu vim de lá, simplesmente! Seria um “vindo”, quando muito, se me quisessem mesmo classificar. Mas não me quiseram classificar. O que as autoridades portuguesas quiseram mesmo, e fizeram, foi internar-me no hospital Curry Cabral durante tempos que pareciam não ter fim. E estava impedido de ver os meus pais ou quem quer que fosse. Os meus únicos contactos eram com médicos, enfermeiras, e tantas outras crianças que por ali andavam, nuas por vezes, vestidas outras. Nunca deixei que me fizessem andar nu, e recordo hoje com carinho a Dona Madalena, não sei se uma enfermeira se uma auxiliar, que me dava todas as atenções que podia. Nunca mais a voltei a ver, mas foi ela quem raspou um pouco da tinta branca do interior das janelas do meu quarto do rés-do-chão, para que os meus pais pudessem espreitar de vez em quando do jardim e confirmar a minha recuperação, que estava vivo, sei lá! A minha cama tinha grades em volta, e o meu travesseiro era um urso amarelo-torrado de pelúcia, que mantive até aos meus onze anos de idade, já velhinho e usado.
Recordo o dia em que tive alta. Um casal esperava-me no jardim do Curry Cabral. Não me recordo bem dela, mas ele tinha, se a memória não me pregou aqui uma partida, um blusão de pele castanho. Eram os meus pais, e eu perguntei-lhes imediatamente se íamos à praia. Era Inverno. Despedi-me da Dona Madalena, que me deu algo doce para eu comer no caminho para sempre longe dela. Claro que continuei muito doente, claro que durante meses todos continuaram a não dar nada por mim, claro que era “pele e osso”, claro que não comia nada, claro que até me levaram a uma curandeira africana em Lisboa que disse que eu trazia o mal. Mas é escusado dizer que aqui estou! No entanto, tudo isto se passou há muito tempo já. Foi já ontem e hoje é diferente.
HOJE
Tenho 33 anos. Após a separação dos meus pais, tinha eu onze anos de idade, vim viver para Coimbra, onde prossegui os meus estudos e onde me licenciei por fim em Antropologia. Porquê Antropologia? Teve alguma influência o meu passado, o passado dos meus pais, tios e avós, nesta opção? A aventura africana da minha família seduzia-me nas aulas de Povos e Culturas de África? Não! Absolutamente nenhuma. Licenciei-me com uma tese sobre arte e etnografia africanas como o podia ter feito com uma sobre o uso de padrões de xadrez nas roupas tradicionais das populações que vivem da pesca em Portugal.
Desde que vim para Portugal vivi em vários sítios. Primeiro em Lisboa, depois na Nazaré, onde comecei os meus estudos, vindo mais tarde para Coimbra, onde prossegui esses estudos e os conclui. Passei depois pela Lousã, pelo Porto, uma passagem por Londres, novamente Porto e, no fim, de volta a Coimbra. A Angola nunca mais regressei.
Em Coimbra chego a trabalhar durante alguns meses com jovens que viriam de Angola para Portugal, vítimas de minas terrestres, para serem submetidos nos hospitais da Universidade a intervenções cirúrgicas aos membros perdidos. Também eles me contaram de Angola, também eles me deram notícias e me fizeram sonhar.
A 27 de Outubro de 2006 falece o meu avô materno, o tal que trouxe a cadela num cesto farto de conversas, e por coincidência nesse mesmo mês, dias depois, na sequência de um contacto com uma agencia de consultoria internacional sediada em Bruxelas, fui contratado como especialista para Angola numa missão da Comissão Europeia nos PALOP. Já não pude dar essa mesma notícia ao meu avô que tinha feito a viagem para Angola em tempos muito mais difíceis.
AMANHÃ
Ao fim de 31 anos vou finalmente regressar! Não sei bem a quê eu regresso, se às origens, se a casa, se à terra. Não consigo ainda compreender o que me vai acontecer. No entanto, e por mais que não o consiga explicar, sinto que é algo demasiado grande o que está para vir. Assusta-me e chama por mim ao mesmo tempo, de uma forma a que eu nunca conseguiria resistir mesmo que quisesse.
Dia 17 de Janeiro de 2007, às 22.15 h, embarco num voo da TAP que me vai levar na minha primeira viagem a outro continente. E que outro continente! Aquele onde um dia fui desejado e nasci. No dia seguinte, às 7.00 h da manhã, com o nascer do dia, as portas desse avião vão ser abertas e há-de chegar o momento em que me levantarei do meu lugar e me encaminharei para a saída. Tenho a certeza de que me irei emocionar, não é possível pensar que possa ser de outra forma. E lá chegará o instante em que, já fora da influência do ar condicionado do avião, sentirei após mais de três décadas de ausência o efeito do ar quente e húmido de Angola. Vou chegar ao nascer de mais um dia, em plena estação das chuvas, e pode ser ilusão mas sinto verdadeiramente que só lá me poderei finalmente conhecer, sentir-me completo, adulto, descodificado.
Não sei ainda se ficarei apenas em Luanda, onde já sei ir ficar a residir nas Ingombotas, ou se irei fazer incursões pelos arredores ou por províncias do interior. Não estarei em férias, e sim numa missão, com um trabalho concreto, com contactos a fazer, com reuniões a efectuar, com relatórios a escrever, com conclusões a tirar, com discussões a empreender. Mas todos aqueles que me contrataram, que contam com o meu desempenho e desenvoltura, com os meus conhecimentos e contactos no âmbito desta missão da Comissão Europeia, e que sobre os nossos relatórios e conclusões irão posteriormente basear a sua intervenção nos PALOP’s, a estratégia europeia para África, não sabem um pequeno detalhe sobre mim, algo que eu não referi no Curriculum. É que também eu nessa missão terei uma agenda própria, uma missão paralela, algo que só a mim diz respeito. Tentar saber quanto de mim é dali e se me será possível depois regressar. Tenho também a missão de me tentar conhecer a mim próprio e por isso mesmo irei uns dias antes do coordenador.
Durante anos sonhei várias vezes um mesmo sonho: estava em Luanda, sozinho na praia pela primeira vez; tinha à minha frente o Atlântico sul, quente, pacífico; estava sol, haviam palmeiras na praia, e eu começava a correr pela areia em direcção ao mar azul, e ia-me despindo em andamento e atirando as roupas pelo caminho; até que sentia nos pés, e depois nas pernas, e depois no tronco e finalmente no rosto o mar de Luanda; e então vinha à superfície respirar, e em silêncio gritava de felicidade. Falta pouco, isso é já amanhã.
(Fotografia: Paris, 9 de Dezembro de 2006 / Texto: Coimbra, 28 de Novembro de 2006)
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