Friday, October 26, 2007

O sonho de Marion


Era uma vez, há muito tempo atrás, uma marioneta verde. Ela não era verde propriamente! Verde era o vestido com que quem a fez a vestiu, verde com pequeninas pintas brancas. Por cabelos tinha sedosas barbas de milho seco nos anos, e por braços e pernas pequenos ramos de salgueiro. No rosto tinha desenhados grandes olhos verdes, como o seu vestido, e uma boca sem grande expressão. Não se sabia, olhando-se para ela, se estava feliz ou triste.

A sua dona, uma menina de oito anos de idade, de vez em quando lá a tirava da caixa onde estava guardada, junto com outros brinquedos, e representava com ela a vida que achava que iria ter quando crescesse. Por entre casas de bonecas e destroços de brincadeiras espalhados pelo chão do quarto, Marion, a marioneta, passeava e representava a vida que a sua dona desejava naquele instante, de histórias de amor a dramas, de brincadeiras de escola a tragédias, consoante a imaginação do momento.

Mas Marion não era uma marioneta qualquer, não! A dona de Marion não sabia que quem a fez tinha um encanto tal nas mãos que deu a Marion a capacidade de sonhar, de sentir. E Marion sentia! E o que Marion sentia, por muita afeição que nutrisse pela sua dona, era uma vontade enorme de se libertar dos fios que a prendiam à cruz de madeira com que a controlavam, com que lhe dirigiam os movimentos e as acções, e sair para conhecer o mundo, para assistir ao pôr-do-sol, para ver como o mar tinha ondas, para olhar como o céu tinha estrelas, para sentir a areia nos pés, para caminhar pelas ruas, para dançar nos bailes, para correr nos prados da cor do seu vestido. Marion sonhava com esse dia em que, sem cordas, se erguesse e caminhasse pelos seus próprios pés, escolhendo o seu próprio destino.

Certa noite uma estranha luz invadiu por breves instantes a caixa onde Marion era guardada entre outras estranhas tropas de bonecas e brinquedos. E quando a luz se extinguiu Marion sentiu um movimento dentro da caixa. E esse movimento era uma perna sua que se mexia! Pasmo! Marion mexia-se! O sonho de Marion tinha-se concretizado. Então, devagarinho pela estranheza de tudo, Marion ousou levantar a tampa da caixa e espreitar o mundo lá fora. Olhou para a direita, olhou para a esquerda, e finalmente a boca sem expressão de Marion se transformou num belo e rasgado sorriso.

Saltou da caixa, caminhou um momento sem sentido, experimentando as suas pernas e a sensação de não ter ninguém a controlá-la, e depois foi! Foi conhecer esse mundo que tanto a fascinava. Esse mundo que via do lado de fora da janela, com tantos bonecos caminhando pelas ruas sem fios, livres, indo onde quisessem ir e fazendo aquilo que desejassem fazer. Havia até bonecos de quatro patas, mais pequeninos e com pelo, que a fascinavam e abanavam para ela uma curiosa extremidade peluda.

E Marion caminhou e caminhou pelas ruas, pelas cidades, pelo mundo. Anos se passaram e Marion nunca mais teve cordas a prenderem-lhe braços e pernas. E Marion viu tudo o que desejava ter visto. Viu a aurora boreal e conheceu uma chuva de estrelas, rodopiou na relva e sentiu a chuva no rosto... Mas com o passar dos anos também o sorriso de Marion se ia esbatendo no seu rosto de boneca. Marion viu gente vivendo sem sorrir, conheceu a expressão do sofrimento e da impotência estampada nos rostos de muitos. Marion ouviu falar, e viu, imagens da guerra que uns declaravam a outros. Conheçeu a opressão e a servidão. Viu crianças sem os pais que a sua antiga dona tinha, que a beijavam todas as noites quando a iam deitar. Viu rostos perdidos e com medo. Marion aprendeu o que era de facto a morte. E então, e só então, se deu conta que todos estavam, como ela tinha estado um dia, presos a fios que os controlavam. De certa forma não eram assim tão distintos. A grande diferença é que estes fios de agora, por não poderem ser vistos, não poderiam ser cortados com facilidade. Marion caminhou então para a costa, uma vez mais, e lá chegada sentou-se na areia a olhar as pequeninas ondas que iam e vinham, e a pensar, enterrando os seus pézinhos de salgueiro na maré baixa... Fechou os olhos.

Tempos depois uma senhora muito velhinha passeava na praia com o seu cão quando bateu com o pé descalço em algo que a magoou. Parou, e baixando-se com a dificuldade dos anos, desenterrou o restante do que a agredira. Era uma cruz de madeira com uns fios presos. A idosa puxou pelos fios e lá veio, cheia de areias e já muito estragada, uma pequenina marioneta com um vestido verde com pintinhas brancas. Já não tinha cabelos nem boca, mas os olhos... ah, os olhos não deixavam enganar! Nunca os esqueceria! E então ergueu a boneca, susteve-a no ar frente aos olhos por momentos, e abraçando-a junto ao peito exclamou com um sorriso e lágrimas verdadeiras na voz “Marion! Minha Marion! Vamos para casa...”

(Fotografia: sobreexposição, Portel, Portugal – 6 de Outubro de 2007 / Texto: Lisboa, Portugal – 26 de Outubro de 2007)

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5 comments:

RUX said...

O importante é nunca perder os outros fios, aqueles que nos ligam a quem amamos.

abraço

Celso Rosa said...

Por um lado, porque por outro essas ligações a quem amamos podem ser o mais cruel cárcere! Quem ama jamais poderá ser absolutamente livre.

Um abraço para ti também.

RUX said...

Temos visões diferentes. Para mim, é exactamente no amor que encontro a liberdade. Como no poema de Luís Cernuda: "Liberdade não conheço senão a liberdade de estar preso a alguém cujo nome não posso ouvir sem calafrios..." (Se o homem pudesse dizer).

Um abraço

Celso Rosa said...

Se uma pessoa sente calafrios ao ouvir o nome de alguém eu cá acho que devia era fugir... Não vá esse alguém aparecer de repente!

RUX said...

Ahahahahahah, demais.
A palavra na tradução do espanhol foi mal escolhida. Calafrios no sentido de arrepios, talvez seja mais adequado, sentir um arrepio de emoção, paixão ou amor.

abracinho