Wednesday, March 21, 2007

O homem que amou

Era uma vez um homem! Esse homem, jovem, era muito feio, disforme, com um rosto saído directo de macumba, e nem os seus pais o amaram. Tinha perdido perna esquerda numa mina, e para falar sério os seus pais não foram pais de verdade… lhe fizeram só! No entanto, era possuidor de um enorme coração, esse jovem, pastor de ofício, e capaz de criar sistemas complexos como universos no que tocava a sentimentos e casaliçes. Havia noites que dormia lá fora, olhando estrelas quando as havia, e tentando imaginar como seria um beijo beijado de verdade.

Foram anos passados assim, na mais absoluta ausência de contactos, na mais desértica e gelada rede afectos. Era insuportável! Se Deus tinha lhe criado assim, perguntava-se, porque lhe dera ele emoções, sentimentos? Como era então? Lhe ensinaram a amá-lo na catequese dos padres da missão, mas o que aprendeu foi a odiá-lo com todas as suas forças. Dava tudo para que a sua vida não tivesse de ser assim! Vida assim não valia mesmo...

Uma noite sem estrelas, quente mas tão escura que nem se atreveu a sair para fora, o Diabo procurou-o na sua pobre cubata e, passado o choque inicial e engasgo do pastor, lhe fez a seguinte proposta: “Dou-te o que desejas! Vou-te reinventar de tal forma que vais poder sentir um beijo e tudo o mais que todos os outros sentem. Apenas uma coisa não poderás nunca dizer a ninguém, e isso é que amas! Dizê-lo está-te proibido, vedado, nunca esqueças! Se o disseres perdes-te para sempre no mais desértico deserto onde nunca levarias tuas cabras a pastar! Amanhã volto para ouvir a tua decisão”. E, como tinha aparecido, assim desapareceu no cheiro do lume ainda aceso.

Dia seguinte, exactamente na mesma hora, regressa o Diabo na cubata solteira em busca da decisão de verdade. E a decisão foi que sim, que aceitava. Logo no dia seguinte ao despertar estava cumprido o desígnio, zás! Não mais era coxo, primeiramente, e ao passar em frente ao espelho de latão polido ali estava ele, sem defeito, um príncipe pronto a arrebatar qualquer coração. Um príncipe pastor!

Saiu lá fora sem saber ao certo o que fazer de seguida, mas tamanha era a sua beleza que não passou despercebido no mulherio, e logo na tarde desse mesmo dia, entre ervas altas do capinzal, a promessa foi cumprida! Um beijo foi finalmente dado e recebido, panos tirados à pressa, a carne rasgada na volúpia e no prazer. Aves gritaram na distância, estava selado!

Assim continuou o príncipe pastor ao longo dos dias, dos meses, saltando de lábios em lábios, de corpos em corpos, de leitos de rio em capinzais, até que um dia veio! E esse dia aconteceu parar as suas conquistas, e quem fez tal milagre foi uma jovem de cabelos curtos e estragados, olhos negros fundos, dona de um rosto onde eram visíveis maus-tratos do tempo, da vida e dos trabalhos nas lavras de mandioca exposta aos elementos. Mas o seu coração, ah, esse era de rainha, e os seus lábios de marufo! Prendia mesmo no seu jeito de prender! Seus braços perdiam reacção, seu corpo perdia força de fugir... Assim se apaixonou o pastor!

Encontraram-se em breve na carne de ambos, e nesse enlace nem se deu pelo tempo passar, pelos meses volvidos, as estações, até um dia… E nesse dia tudo o que aconteceu foi estarem de verdade apaixonados um pelo outro, e ele com ela querer casar e fazer filhos. Mas, não sem razão ou propósito, ela pergunta-lhe: Tu amas-me de verdade?

E pronto, e agora é que estava! Que fazer da lembrança já quase esquecida do que poderia não ter sido real mas que realmente aconteceu? Lá veio o cheiro a cinza de fogueira, os gritos dos pássaros... Que fazer do pacto? Como agir? Como recuperar a pureza? Veja-se, se dissesse que a amava perdia-se para sempre, perdendo-a em simultâneo, ela que era o mais precioso da sua pobre vida! Se lhe dissesse que não ou nada lhe respondesse estava a afastá-la por outros caminhos, para outro longe diferente, sentia-o. Que fazer então? Mergulhar nas águas dos espíritos? Tentar os antepassados? Nada! Que fazer então?

Pois eu que aqui vos conto esta estória nunca soube o que aconteceu, o que ele lhe respondeu. Verdade! Já quem me contou estes factos aqui narrados também não soube contar o final, nessa forma que este povo tem de esquecer os maus momentos. Mas isso também pouco importa, pois quando se perde alguma coisa pouco importam então as razões de se ter perdido. Foi só! O resto apenas abre mais a ferida que dói e, neste caso contado aqui, nunca nada esteve ganho, pois fora construído sobre ilusões e falsas esperanças. Mas pode algum criticar? Podes? Mas pensar que tudo isto aconteceu na minha Angola, logo ali numa pequena aldeia lambida de mar, onde nunca nada acontece, aperta este meu velho velho coração!

(Fotografia: Morro da Cruz, Luanda – Angola, Fevereiro de 2007 / Texto: Coimbra – Portugal, 21 de Março de 2007)

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2 comments:

Anonymous said...

so pode haver por de tras disto tudo uma boa fonte de inspiracao...
estao tao lindo...
s.g.o

Celso Rosa said...

E há! Agora mais do que nunca...