Wednesday, January 09, 2008

Falar-te de lugares onde sempre estiveste


Abro os olhos devagar. Nada. Fecho-os e abro-os de novo no desejo de te ver. Uma vez mais. E outra. E outra. Nada. Sorrio então. Abro os olhos. Está escuro lá fora e fecho-os de novo e de novo e de novo.

Dez, nove, oito...

Quero apenas inventar-te. Uma vez mais, uma última vez. Recordo a luz que no final das tardes nos visitava em casa furando pelas malhas dos cortinados cor de tijolo que dançavam na brisa quente e meiga. Sorrio e penso em ti. Invento-te aqui, em lugares que nunca conheceste e onde sempre estás na minha companhia. Penso em ti. Fecho os olhos e estás aqui e eu aqui contigo. O teu tempo e o meu juntos para que tenhamos mais tempo. Mais tempo.

Quanto tempo teve o tempo para nos dar? Recordas?

O teu rosto, o teu cheiro, a tua luz, e o que de ti havia em cada um destes pequenos detalhes para que eu amasse e guardasse para sempre. E como amei!

Lembras-te ainda de mim?

Num movimento lento e espontâneo olhas-me profundamente com os teus olhos castanhos de súplica como se não me reconhecesses mais, como se nunca antes me tivesses conhecido. Como se não soubesses quem hoje sou e timidamente me quisesses perguntar uma qualquer direcção por te encontrares perdida. Viras o rosto.

Onde vais?

Queria falar-te, queria dizer-te qualquer coisa que te fizesse ficar. Não consigo. Não sou bom com as palavras. Olhas-me com esses teus olhos de fantasia, grandes botões de madrepérola cosidos no rosto da mais bela boneca de trapos. Tu fazes-me sonhar miúda, mulher.

Sabias que me fazes sonhar?

Sinto desejo. Pelo menos nós sabemos quem somos e qual o nosso lugar. Para pessoas como nós nunca foi difícil encontrar o caminho de casa. O mundo é ainda nosso por direito.

Vá, faz-me agora esse teu passe de mágica!

Com o olhar fixo nas minhas mãos antigas ergues lentamente o teu rosto até que os nossos olhares se encontram. E sorris. E o mundo começa precisamente nesse instante. Sinto o teu cheiro, o perfume a baunilha que o teu corpo quente exala e abandona pela casa, no quarto, em frente ao Atlântico. Falas-me finalmente de ti. Queria sussurrar-te ao ouvido tudo o que aconteceu na tua ausência ao longo de tantos e tantos anos. Andei à deriva e tudo mudou menos o que sinto ao ver-te.

Crisálida!

Pousas a tua mão na minha, um dedo teu nos meus lábios, e deixas as tuas impressões digitais no meu corpo. Queria parar-te nesse preciso instante. E ai mesmo me abandono nos teus cabelos e viajo em direcção ao teu rosto, à tua boca, onde me perco, onde me encontro e perco outra vez. Sinto o teu calor nos meus lábios e os teus braços envolvem-me já. E as horas vão-se demorando por aqui até que o tempo pára fascinado e invejoso de nós dois.

Fomos assim tão felizes?

Provam-no os travesseiros em desalinho sobre os lençóis brancos onde nunca se dorme. Queria dizer-te que és o meu mundo, fio de Ariadne que me prende à vida, mas não. Não sou nem nunca fui bom com palavras. Abro os olhos. Sorris-me e tornas-te difusa e mais bela à primeira claridade da manhã. Fecho-os.

Acabou já?

Queria parar-te. Mexo-me. Mexes-te. O teu fantasma envolve-me e o dia nasceu já. No local onde estavas tu pairam agora no ar quente da respiração milhares de pequenas partículas coloridas. Na cama o teu lugar está vazio e eu sinto o teu cheiro nas mãos e nos lábios este gosto de amêndoas provadas na madrugada.

(Fotografia: Porto, Portugal, 2 de Janeiro de 2008 / Texto: Gijon - Oviedo - Porto – Coimbra, Espanha e Portugal, 19 a 30 de Junho de 2003)

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1 comment:

Anonymous said...

Um belíssimo texto, amigo.

Tiago