Thursday, September 06, 2007

O mundo nas tuas mãos

O tempo tudo apaga, e também eu não ficarei para sempre.

(Fotografia: Sangano, Angola – 29 de Agosto de 2007 / Texto: Luanda, Angola, 31 de Agosto de 2007)

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Se vivesses aqui estarias agora em casa


Relembro o crepitar de uma lareira na Lousã em Dezembro numa casa que era minha e a paz que ali senti com a minha cadela preguiçando pela sala semi-aquecida nessa noite próxima do Natal. E sinto uma ausência. Relembro-me junto ao Tamisa em Londres fumando um cigarro numa amurada do rio e assistindo ao devir rápido da cidade transitando da luz para a escuridão. E sinto uma ausência. Relembro um fim de tarde gelado e ventoso mas solarengo em frente ao mar na cidade do Porto sentado numa cadeira o casaco bem fechado luvas e cachecol cobrindo-me boca e nariz e eu feliz na ventania com o sal marinho a queimar-me os olhos. E sinto uma ausência. Relembro um entardecer chuvoso e escuro em Coimbra e eu junto ao rio esperando o transporte para casa ouvindo as badaladas da torre da Universidade. E sinto uma ausência. Relembro-me pelas ruas de Capri em Janeiro à noite cantando em dueto ao frio da madrugada instigado pelo excesso de cerveja e alegria. E sinto uma ausência. Relembro as sombras das plantas da rua no alaranjado das paredes brancas da casa de Coimbra ao pôr-do-sol e eu sentado no sofá frente à janela ouvindo Maria Callas e aguardando com entusiasmo a chegada da Ursa Maior ao meu olhar de criança. E sinto uma ausência. Relembro caminhar por Amsterdão com uma música de Jobim na cabeça e pensando na melhor prenda a dar a uma mulher. E sinto uma ausência. Relembro uma felicidade tão grande que não acreditava que pudesse existir mais que isso na vida. E sinto uma ausência. Relembro tanto mais que não queria esquecer nunca. E sinto uma ausência. Relembro-me num banho de água quente deitado sonolento e coberto de espuma com jazz vindo da sala misturado com aroma de incenso e um copo de Martini Bianco pousado na borda da banheira num quarto de banho iluminado somente por velas. E sinto uma ausência. Relembro uma noite quente na Nazaré frente ao mar numa varanda com boa companhia e virando uma garrafa de Porto nos breves intervalos do silêncio antes do mergulho na madrugada. E sinto uma ausência. Relembro-me fotografando em Paris no Dezembro mais gelado da minha vida com um gorro enfiado na cabeça e cobrindo-me as orelhas. E sinto uma ausência. Relembro conversas de automóvel ao som de boa música vidros abertos e braço de fora segurando o cigarro que ia fumando a intervalos ao distanciar-me de lado nenhum. E sinto uma ausência. Relembro um corredor escuro na Universidade e eu sentado um tempo sem fim num sofá à espera de saber a classificação do meu trabalho e uma porta de madeira abrindo-se finalmente e aquela frase que me fez pensar por uns dias que poderia realmente voar. E sinto uma ausência. Relembro caminhar ao longo da baia de Luanda com todo o vagar e saudade de outros céus mais frios. E sinto uma ausência. Relembro uma mesa composta de companheirismo e saudade antecipada no Porto quando palavras poderiam perfeitamente ter sido colocadas de lado em prol de sorrisos e olhares. E sinto uma ausência. Relembro a excitação de um regresso a casa após uma viagem e a antecipação dos sorrisos sem haver lugar para os maus momentos. E sinto uma ausência. Relembro-me deslumbrado pelas aves ao entardecer de Fevereiro em Roma bebendo um café e aquecendo na chávena os meus dedos para melhor pegar na caneta com que escrevia. E sinto uma ausência. Relembro a esperança no futuro quando fechava os olhos na noite e poderia ter sido quase tudo sem sair de um mesmo lugar. E sinto uma ausência. Relembro acreditarem em mim e de eu próprio acreditar. E sinto uma ausência. Relembro daram-me parabéns e cantarem-me num jantar de aniversário. E sinto uma ausência. Relembro o sofrimento ao abandonar pela última vez o pequeno quarto onde me fiz adulto para me lançar na aventura falhada da vida e de me ter sentado na borda da cama olhando as estantes vazias agora onde antes havia vida. E sinto uma ausência. Relembro a voz perdida e distante da minha mãe ao telefone a milhares de quilómetros. E sinto uma ausência. Relembro os olhos incertos e assustados do meu avô numa cama de hospital nos seus últimos dias de vida procurando prados verdes em paredes pintadas de azul. E sinto uma ausência. Relembro passear de braço dado pelas docas da Coruña sem querer realmente saber como seria o dia seguinte procurando escolher o local ideal para jantar. E sinto uma ausência. Relembro o soluço contido da minha avó no dia da minha partida para Angola. E sinto uma ausência. Relembro as cortinas brancas de um hotel na Foz do Arelho ondulando na brisa da tarde num quarto sobre um mar coberto por um céu púrpura. E sinto uma ausência. Relembro um aperto de mão e um “até breve”. E sinto uma ausência. Relembro estar sentado na praia numa manhã de Julho em Sanxenxo sentindo o sol acariciar-me a pele após uma noite de cansaços e álcool com aves planando suavemente ao alcançe de um braço num sonho. E sinto uma ausência. Relembro acordar de manhã com a excitação de uma viagem à muito esperada só para conferir uma vez mais a bagagem arrumada à vários dias atrás. E sinto uma ausência. Relembro o aperto que sinto cada vez que passo de comboio pela casa onde cresci a caminho de qualquer lugar distante. E sinto uma ausência. Relembro-me na estação ferroviária de Nápoles com a desejada cabeça pousada sonolenta sobre o meu ombro direito e eu petrificado de espanto sem saber o que fazer ou o que dizer e um cigarro fumando-se sozinho numa mão esquerda de pedra. E sinto uma ausência. Relembro os dedos do meu pai cheirando a tabaco ao lavar-me o rosto com água fria antes de me deitar e me dizer adeus para sempre. E sinto uma ausência. Relembro o desejado cigarro em Bilbao após horas encerrado aborrecido enfadado num museu. E sinto uma ausência. Relembro de me terem certo dia desejado “boa sorte”. E sinto uma ausência. E de tanto sentir todas estas ausências de tudo o que vivi ou imaginei ter vivido quase que me rasgo em dois no desejo de ir fazendo o percurso inverso até encontrar de novo uma vez mais cada um desses frágeis momentos que pouco significando em si mesmos deram sentido ao que sou e substância a tudo quanto desejo da vida. É como se cada segundo passado fosse um fragmento da mesma fita adesiva que me envolve e sustém em mim cacos conexos. Escrevendo assim talvez um dia se a memória me falhar em definitivo eu possa ler tudo isto e no que leio descobrir quem fui e dar-me conta que sem cada um desses instantes eu seria apenas e nada mais do que a catástrofe.

(Fotografia: Porto, Portugal, Junho de 2007 / Texto: Luanda, Angola, 3 e 4 de Setembro de 2007)

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