Wednesday, September 27, 2006
A violência do impacto
Pensando sobre o suicídio lembro-me de ter considerado que este deve ser um acto praticado por quem crê numa vida após a morte, por alguém que acredita ter o espírito uma existência distinta e autónoma em relação ao corpo, acreditando que apenas este último desaparece, permanecendo um espírito (um eu imaterial) e uma consciência de si, mas não me encontro mais tão seguro nessa posição, pelas razões que de seguida procurarei explicar.
Levando em conta o sofrimento limite que um ser humano deve ter de sentir de modo a não ver outra solução senão tirar a própria vida podemos também supor, pelo menos disso estou relativamente convencido, que o acto que decide praticar (ou que pratica, sem sobre ele reflectir demasiado, num momento de desespero) é também em si mesmo uma espécie de penalização que esse mesmo suicida verte sobre os que consigo privaram, numa esfera mais íntima, e que de algum modo não contribuíram para o atenuar desse mesmo sofrimento ou, mais grave, foram seus causadores ou potenciadores. Quero com isto dizer que considerava que o suicida vertia a culpa, ou parte dela, sobre os que lhe eram mais próximos, tais como os amigos, a família ou os colegas.
Deste modo, por um simples exercício de racionalidade e de imaginação, podemos supor por parte do suicida um desejo intimo e não expresso (ou mesmo expresso, em notas suicidas) de magoar, de transferir para outros parte ou a totalidade do peso da existência amargurada que leva em vida. A expressão desse desejo seria o próprio acto suicida. Ao suicida caberia, assim, suportar uma angústia momentânea, eventualmente sentida no momento do acto em si, mas aos que lhe sobreviveriam caberia, na mente desse mesmo suicida (crente na referida separação corpo/espírito e na continuidade deste último, que atrás referi), suportar um peso maior: uma angústia pela vida inteira, uma quota parte de responsabilidade sobre o sucedido, um sentimento de culpa por nada ter feito, por não se ter apercebido, uma ausência definitiva de alguém que fez parte da sua vida e porventura se amou, sempre ou em dado momento. Assim, numa mente amargurada, a consumação do acto ditava, ela mesma, uma imediata sentença sobre as pessoas das suas relações. Isso serviria para a transferência da angustia daquele que se despede da vida como que dizendo “Vêem ao que me vi obrigado, vivam agora com isso! Não sou culpado.”
Ora, a questão que me colocava com frequência era a seguinte: teriam tido aqueles que sobre o suicídio pensaram, ou que o praticaram na forma consumada ou tentada, a ilusão de que após a morte os seus eus imateriais, as suas consciências, por aqui ficariam para observar as consequências daquilo que os seus actos causaram sobre os seus familiares, amigos ou colegas? Desejariam eles que as suas consciências testemunhassem o desgosto, a dor, o sofrimento que os seus próprios desaparecimentos causariam na vida de outros como recompensa por não os terem conseguido salvar a tempo? Dando um exemplo concreto, terá um elemento de uma relação amorosa que decide suicidar-se, por ter sido traído ou ter deixado de ser correspondido, um desejo intimo e secreto de com o seu acto provocar dor e um sentimento de culpa perpétuo sobre o outro elemento? E acreditará ele que após a sua morte o seu espírito por aqui andará para testemunhar o sofrimento causado, regozijando-se em vingança e auto-comiseração? Não me parece de todo uma hipótese a colocar de parte, bem pelo contrário. O suicídio é um acto extremo que estou convencido comportar em si mesmo também um castigo para os que sobrevivem.
Então, a questão inicial que me coloquei, de considerar ser o suicídio um acto praticado fundamentalmente por aqueles que crêem numa vida após a morte, numa continuação de um eu após o acto suicida em si mesmo, está directamente ligada ao que acabei de referir. Veja-se novamente: se as consciências sobrevivessem à morte do corpo os suicidas teriam o prazer de observar os efeitos nefastos do seu acto sobre os outros. Essa seria a recompensa! Só desse modo teria o suicídio razão de ser. Ver o sofrimento causado a quem não nos salvou faria o auto-extermínio valer a pena!
Parece simples este raciocínio, não? Porém dou-me conta de como é redutor e enganador pensar desta forma. Dizia Nietzsche que a recompensa da morte é não ter de passar por ela de novo. Como levamos este factor em conta na equação do suicídio? E se pensarmos ser o acto suicida praticado também por quem tem consciência de que após a sua morte o que lhe resta é o nada? Faz sentido? É plausível? E se pensarmos poder ser o acto suicida praticado também por quem nem sequer se preocupa em considerar se poderá a sua consciência permanecer neste mundo ou não? Faz sentido? E se pensarmos ser o acto suicida praticado também por pessoas a quem não interessa minimamente buscar responsáveis e culpa-los? E se pensarmos ser o acto suicida praticado também por pessoas que simplesmente estão cansadas de viver? Será isto possível? Creio que sim. O caso daqueles que optam, onde essa opção é possível, pela eutanásia comprova isto mesmo. Optam por ela sem com isso pretenderam castigar alguém, simplesmente porque as condições em que a vida existe se degradaram a tal ponto que a tornam insuportável. E neste último caso, embora em outras condições que não a da eutanásia, penso ser algo bem mais assustador na medida em que o individuo se sente apenas cansado do mundo, sem quaisquer outras questões pessoais por resolver que o conduzam ao acto suicida, sem querer culpar, sem querer magoar.
Se no caso dos primeiros uma mente treinada e uma presença forte e sagaz pode ainda reverter o processo, dando ao potencial suicida razões para reconsiderar e abandonar a ideia do suicídio, abandonando igualmente a ideia de procurar a culpa nos outros, penalizando-os, no último caso, o de indivíduos cansados das próprias vidas, pouco se poderá fazer para que reconsiderem. Porque quando tudo o mais nos falta a vida é o último reduto do que de facto é nosso, e o universo mental de cada um é o único bastião que jamais se poderá tomar pela força.
Num como noutro caso o assunto é da maior seriedade pois tratam-se de seres humanos à beira da desistência, sendo este um tema sobre o qual penso e sobre o qual me sinto de certa forma satisfeito por, de tempos em tempos, ir pondo em causa aquilo que julgava ser de resposta relativamente simples. No entanto, é talvez chegada a hora de ir baixando a VIDA das alturas em a colocámos, devagarinho para as consciências mesquinhas não ganirem, para que quando chegar a inevitável hora da queda o percurso até tocar a terra seja mais rápido, menos veloz, menos doloroso, minimizando assim a violência do impacto. E tudo porque é urgente aprender a aceitar o fim.
Hoje, 27 de Setembro de 2006, morreu o meu avô materno, o homem que me criou pela vez do meu pai. Não terminou com a própria vida, morreu apenas de viver. Tocou finalmente a terra, e isso só dói a quem fica.
(Fotografia: Fernando Rosa, Salazar - Angola, 1974 / Texto: Coimbra, 26-27 de Setembro de 2006)
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2 comments:
(nada para dizer)
abraço
Tiago
Hold back the night from us,
Cherish the light for us,
Don't let the shadows hold back the dawn.
Cold city lights glowing,
The traffic of life is flowing,
Out over the rivers and on into dark.
I'm going down town where there's music,
I'm going where voices fill the air,
Maybe there's someone waiting for me
With a smile and a flower in her hair
I'm going down town where there's people
The loneliness hangs in the air.
With no-one there real waiting for me,
No smile, no flower nowhere.
Artist: Richard Hawley
Album: Coles Corner
Year: 2005
Title: Coles Corner
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