Monday, June 05, 2006

Neste mundo daqui

Quando o caos chegou à minha cidade eu fiquei. Todos fugiram, uns levando pertences e outros deixando-os absolutamente para trás. Entre gritos e tiros, paredes sendo derrubadas pela explosão de minas, ruas manchadas de um vermelho atroz porque de entranhas, eu fiquei. E não porque tinha inevitavelmente de ficar. Fiquei porque quis. Fiquei porque não fazia sentido que partisse, porque a parte alguma pertenceria jamais como àquele lugar. Fiquei porque estavam ali os meus sonhos e eu não os poderia nunca deixar sós.

Nessa amálgama de sangue e fome, mantive o meu corpo ileso à espera de que tudo passasse e de que pelo menos alguns dos que tinham partido regressassem para que eu os abraçasse de novo. E esperei. E todos os dias fazia exercícios com as mãos ao vento para as preparar para um novo abraço, para novas carícias que ainda não chegaram. Mas esperei, não fugi. Não fazia sentido, percebe-se? Fiz do medo esperança, fiz da fome força, fiz da escuridão a manta debaixo da qual me deitava e sonhava, sonhava… E por entre o brilho das estrelas desse meu cobertor de noite nunca esqueci o teu rosto! E quando as tropas pressionavam o uso das armas eu cobria-me e imaginava-me sempre contigo nas festas populares, dançando dançando dançando…

Se calhar deveria ter partido com todos os outros, com todos aqueles que me tentaram puxar dali para fora. Mas agora é tarde para tentar imaginar como poderia ter sido acaso tivesse sido diferente da forma como foi. Não faz sentido, entendem? Resolvi esperar e esperei sempre, mesmo quando a espera não comportava esperança. E fiz dela uma bandeira para a inevitabilidade de estar aqui, onde ainda estou, à tua espera.

(Fotografia: Nápoles, Itália, 23 de Fevereiro de 2006 / Texto: Coimbra, Portugal, 5 de Junho de 2006)

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5 comments:

Anonymous said...

belo texto. dos que mais gostei de ler. caralho prás esperas!!!!!

tiago

Celso Rosa said...

E já agora, também para os que nos deixaram e nunca regressaram...

Abílio Neto said...

Olá Celso,

«Quando o caos chegou» a tua cidade claro que ficaste, não vieste almoçar a Azambuja - Lisboa!

Abraços,

Abílio Neto

Celso Rosa said...

Caraças pá! Tenho de aí ir um dia e cozinhar-vos um prato da minha terra! Chama-se mussongué e é à base de peixe, óleo de palma e mandioca... Infelizmente a minha vida é um caos que raramente me permite fazer aquilo que desejo. Não leves a mal...
Se eu fugisse para a Azambuja de cada vez que o caos chega à minha cidade não sairia mais dai!
Grande abraço.

Susie said...

Olá, Celso! Adorei o nosso encontro relâmpago. E aproveito eu para pedir desculpa de qualquer coisinha....pois as "condições atmosféricas" não serviam para ninguém! ;)
Olha lá, este teu centro de reciclagem emocional até que está muito bem guarnecido! ;) Um beijo.
Verdade,alguém explique ao Rux que eu não vou nada com a cara do Morrissey!! ;)