Friday, January 18, 2008

O mundo sem ti


Quando não te vi em Luanda percorri as ruas à toa, absolutamente à toa... À toa, e à toa, perdido, procurei sombra fresca e esquecer-me de ti. Bebi vinho de qualidade duvidosa em bancos de madeira à sombra de panos de algodão. Entrei em discussões por perder às cartas, por ganhar às cartas, por não jogar cartas nem saber sequer o que são cartas... Só as que te escrevia para nunca te enviar.

Embriaguei-me vezes sem fim, e de cada vez nos copos aliviava o meu amor imaginário. A náusea e o vómito vindo do fundo do estômago e do medo. Deus, que fiz de mim? O vinho alimentou-me e no fundo de um copo vazio aprendi a ler um futuro afastado do que amei. Vesti panos de cores garridas para me sentir menos dependente de ti e mais em conexão com jardins distantes cheios de animais estranhos. Falei com gentes desconhecidas sobre um mundo do passado, em que fabricava fios de missangas de vidro e barro colorido. Missangas...

Comprei especiarias. Tropecei pelas ruas segurando-me em paredes lascadas e por vezes encostava-me a essas mesmas paredes e deixava-me escorregar até ao chão comendo pão ressequido. Cobria o rosto com as mãos e ria-me do sol que me queimava, com aquele sorriso estragado pelo tempo. E lembrava os colares de missangas, e como em cada missanga, contada de olhos fechados, novos mundos ganhavam forma dentro de mim. E em cada um deles tu estavas! E abria uma pequenina caixa de metal onde guardava drogas poderosas e, na sombra de um quarto fresco e distante, sentia o suor gelado descer-me pela testa em ondas de prazer enquanto me abandonava ao vício.

Que horas seriam? Que importa? É que já nem sabia mais! Desapontava-te? E que te desapontasse, minha querida! Amei-te sem ser perfeito e ouso pedir que aceites finalmente esse amor defeituoso de quem nunca esteve preparado para amar. A mais perfeita forma de amar talvez, quem sabe, porque não? Tacteei a vida em ti, sem mapa nem bússola, e para te perder tive sempre de te encontrar primeiro...

Um dia encostar-me-ei num muro, num lugar distante, à sombra, vendo as crianças brincar na rua. Na brisa quente e na sombra, velho já, queimado, olharei os miúdos jogarem à bola, e as raparigas ajeitarem os vestidos das bonecas, e acenarei com uma mão e um sorriso amigo e sábio. Nesse dia, talvez, encostado a um muro de um lugar longínquo, sorrindo da idade avançada e olhando as crianças, expirarei pela última vez. Quem se aproximar de mim para ver se respiro e para consequentemente me fechar as pálpebras sobre os olhos, pode talvez reparar na imagem que neles estará reflectida: a vida de há muitos anos atrás, distante distante, onde estavas tu.

(Fotografia: Porto, Portugal, 30 de Setembro de 2007 / Texto: Lisboa, Portugal, 17 e 18 de Janeiro de 2008)

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Wednesday, January 09, 2008

Falar-te de lugares onde sempre estiveste


Abro os olhos devagar. Nada. Fecho-os e abro-os de novo no desejo de te ver. Uma vez mais. E outra. E outra. Nada. Sorrio então. Abro os olhos. Está escuro lá fora e fecho-os de novo e de novo e de novo.

Dez, nove, oito...

Quero apenas inventar-te. Uma vez mais, uma última vez. Recordo a luz que no final das tardes nos visitava em casa furando pelas malhas dos cortinados cor de tijolo que dançavam na brisa quente e meiga. Sorrio e penso em ti. Invento-te aqui, em lugares que nunca conheceste e onde sempre estás na minha companhia. Penso em ti. Fecho os olhos e estás aqui e eu aqui contigo. O teu tempo e o meu juntos para que tenhamos mais tempo. Mais tempo.

Quanto tempo teve o tempo para nos dar? Recordas?

O teu rosto, o teu cheiro, a tua luz, e o que de ti havia em cada um destes pequenos detalhes para que eu amasse e guardasse para sempre. E como amei!

Lembras-te ainda de mim?

Num movimento lento e espontâneo olhas-me profundamente com os teus olhos castanhos de súplica como se não me reconhecesses mais, como se nunca antes me tivesses conhecido. Como se não soubesses quem hoje sou e timidamente me quisesses perguntar uma qualquer direcção por te encontrares perdida. Viras o rosto.

Onde vais?

Queria falar-te, queria dizer-te qualquer coisa que te fizesse ficar. Não consigo. Não sou bom com as palavras. Olhas-me com esses teus olhos de fantasia, grandes botões de madrepérola cosidos no rosto da mais bela boneca de trapos. Tu fazes-me sonhar miúda, mulher.

Sabias que me fazes sonhar?

Sinto desejo. Pelo menos nós sabemos quem somos e qual o nosso lugar. Para pessoas como nós nunca foi difícil encontrar o caminho de casa. O mundo é ainda nosso por direito.

Vá, faz-me agora esse teu passe de mágica!

Com o olhar fixo nas minhas mãos antigas ergues lentamente o teu rosto até que os nossos olhares se encontram. E sorris. E o mundo começa precisamente nesse instante. Sinto o teu cheiro, o perfume a baunilha que o teu corpo quente exala e abandona pela casa, no quarto, em frente ao Atlântico. Falas-me finalmente de ti. Queria sussurrar-te ao ouvido tudo o que aconteceu na tua ausência ao longo de tantos e tantos anos. Andei à deriva e tudo mudou menos o que sinto ao ver-te.

Crisálida!

Pousas a tua mão na minha, um dedo teu nos meus lábios, e deixas as tuas impressões digitais no meu corpo. Queria parar-te nesse preciso instante. E ai mesmo me abandono nos teus cabelos e viajo em direcção ao teu rosto, à tua boca, onde me perco, onde me encontro e perco outra vez. Sinto o teu calor nos meus lábios e os teus braços envolvem-me já. E as horas vão-se demorando por aqui até que o tempo pára fascinado e invejoso de nós dois.

Fomos assim tão felizes?

Provam-no os travesseiros em desalinho sobre os lençóis brancos onde nunca se dorme. Queria dizer-te que és o meu mundo, fio de Ariadne que me prende à vida, mas não. Não sou nem nunca fui bom com palavras. Abro os olhos. Sorris-me e tornas-te difusa e mais bela à primeira claridade da manhã. Fecho-os.

Acabou já?

Queria parar-te. Mexo-me. Mexes-te. O teu fantasma envolve-me e o dia nasceu já. No local onde estavas tu pairam agora no ar quente da respiração milhares de pequenas partículas coloridas. Na cama o teu lugar está vazio e eu sinto o teu cheiro nas mãos e nos lábios este gosto de amêndoas provadas na madrugada.

(Fotografia: Porto, Portugal, 2 de Janeiro de 2008 / Texto: Gijon - Oviedo - Porto – Coimbra, Espanha e Portugal, 19 a 30 de Junho de 2003)

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