
Foi próximo do fim da tarde já que se começaram a ouvir os rumores. Algo tinha acontecido e as pessoas juntavam-se em grupos falando com pesar e uma expressão grave desenhada nos rostos. Procurei saber o que se passava e disseram-me para ligar a rádio na Emissora Nacional, que não ia acreditar, mas que Deus tinha morrido. Regressei ao meu gabinete e assim o fiz. Tinha acabado de sintonizar a estação quando ouço através das ondas de rádio a difusão de uma voz masculina comovida que dizia: “Repito, de acordo com a agência noticiosa Reuters Deus morreu hoje, próximo das três da tarde, quando efectuava uma visita oficial ao Panamá. Ainda não se conhecem os pormenores deste acontecimento, sabendo-se apenas que Deus se sentiu mal e caiu entre a sua comitiva, sendo imediatamente assistido pelos seus Ministros que o conduziram para longe dos olhares curiosos...”
Desliguei a rádio, cortando a meio o discurso do locutor, e dirigi-me à janela para olhar a rua lá em baixo, vendo os mesmos grupos de pessoas comovidas em todos os passeios falando com expressões dolorosas. Todos estariam a comentar a morte do líder, e o tráfego parecia ter abrandado. O sol alaranjado deitava-se já suavemente no horizonte e peguei na minha pasta, enfiando à pressa uns papéis lá dentro. De seguida peguei no casaco e dirigi-me para casa.
Na rua as pessoas olhavam-me com olhos tristes. Todos se olhavam condoídos uns aos outros, como estranhos dando-se os sentimentos recíprocos, e segui pelas ruas com uma calma de que já não havia memória. De resto tudo estava igual, a luz de fim de tarde, a brisa, o cheiro da cidade... Antes de ir para casa passei num self-service para comprar qualquer coisa já feita para levar para o meu jantar. Por trás do balcão havia uma televisão acesa e o empregado, de costas para a porta de entrada, olhava as notícias com a boca aberta de espanto. Pigarreei para chamar a sua atenção para a minha presença. Ele virou-se, encarando-me com a mesma expressão triste dos outros lá fora. No pequeno ecrã colorido podiam ver-se imagens de rostos do mundo inteiro em comovente sofrimento. Massas de gente iam-se concentrando com velas nas praças das cidades. Repórteres do mundo inteiro debatiam-se pelas escassas informações disponíveis...
Levei comigo chop-sui de vaca e arroz chau-chau, e entrado em casa pousei na cozinha os embrulhos e deitei o casaco sobre o sofá. Liguei o televisor no canal noticioso, onde a necessária notícia da morte de Deus, que iria ocupar a humanidade por longo período, se intercalava com outras menores como o número de mortos do dia no Iraque, o reacender de tensões antigas entre a Venezuela e os Estados Unidos, o aumento do número de desempregados no sul europeu... Cortei o som do aparelho, deixando apenas a imagem como companhia na minha sala vazia, e preparei um uísque com três pedras de gelo. Bebi-o junto à janela para a rua, erguendo os olhos para o muro da casa em frente da minha, onde o sol morria no mais belo festival de cor que havia visto. No telhado um gato movia-se preguiçoso, alheio a tudo excepto aos últimos raios de sol.
(Fotografia: alteração cromática, Bilbau - Espanha, Abril de 2007 / Texto: Coimbra - Portugal, 30 de Maio de 2007)
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