I’m ready now to tell you all the little things I wanted to but just couldn’t.
(Photography: Paris, December 8th, 2006)
© All rights reserved.
Sunday, January 07, 2007
A Missão
ONTEM
Nasci em Angola no dia 23 de Setembro de 1973, numa cidadezinha do interior, capital do Kwanza Norte, chamada Salazar. Angola era uma das colónias portuguesas em África, e vivia já desde os inícios dos anos 60 uma situação tensa e violenta, com grupos organizados lutando supostamente pela independência e auto-determinação daquele país, tendo tido início com os levantamentos e massacres da população branca e alguns grupos locais, como os Ovimbundo, por parte de membros da União dos Povos de Angola (UPA). E o Kwanza Norte, terra de café, foi uma das regiões mais massacradas no território angolano, pois era muito cobiçada e muito rica em vários produtos e minerais.
Em Novembro de 1975 Angola alcança finalmente a independência desejada. Começa então um outro caos, uma nova forma de inferno, com a queda, um após outro, dos ícones coloniais numa guerra civil que viria a durar décadas, a minar grande parte do território e a custar a vida a milhares de pessoas. A cidadezinha onde eu tinha nascido, Salazar, toma então o nome de N’Dalatando, abandonando o nome do odioso ditador António de Oliveira Salazar. Eu tinha pouco mais de dois anos de idade quando, com os meus pais e restante família, espalhados todos um pouco por toda aquela zona do Kwanza Norte e pela capital, Luanda, fui obrigado pelas armas a abandonar a minha casa, o sítio onde tinha crescido, Quiculungo. Ouvi contar que era já demasiado tarde para tentar chegar de carro à capital, a Luanda, e procurar aí alguma da segurança que já não existia no interior norte, ocupado pela Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) apoiada pelos Estados Unidos. Ouvi contar, porque não me lembro. As estradas estavam já tomadas por guerrilheiros da FNLA, geralmente hostis às populações portuguesas, e a segurança da capital, nas mãos do Movimento Popular para a Libertação Angola (MPLA), com o apoio da URSS, seria impossível já de alcançar. Era tarde demais. O abandono de Quiculungo deveria ter sido antecipado, mas as pessoas nunca quiseram acreditar que se chegaria àquele ponto. Então, naquele distante mês de Janeiro de 1976, debaixo do som dos tiros disparados na rua, do choro, dos gritos, fizeram-se malas à pressa e integrámos colunas de automóveis e camiões em êxodo pelas estradas em direcção ao norte, à fronteira com o Zaire, sem protecção alguma pois as tropas portuguesas tinham abandonado Angola logo após a independência. Estávamos entregues a nós mesmos, e aos cartões de membro de todos os partidos nacionais que geralmente as pessoas tinham numa tentativa de acender velas a Deus e ao Diabo, e nem todos os membros da minha família sabiam uns dos outros. A guerra tinha-nos chegado a todos subitamente, sem pré-aviso, e apanhou-nos nos hábitos diários. Cada um fez então o que pôde, o que tinha de fazer, independentemente do que sentia por dentro. Isto disseram-me, porque não me recordo. A sobrevivência foi procurada por todos os meios disponíveis, esse é um dos milagres do Homem. Isto ninguém me disse, e só hoje o posso pensar.
Dias mais tarde eram milhares dentro de viaturas, sujos, com fome, cansados, com medo, demasiado confusos, só à espera de autorização das tropas zairenses para atravessar a fronteira para aquele país vizinho e abandonar de vez toda a vida que aconteceu em Angola. E nem todos sabiam de todos, estando perdidos muitos uns dos outros. Ouvi contar que eu estava muito doente nessa altura. Ouvi contar que poucos davam o que quer que fosse por mim, pela minha sobrevivência. Mas a autorização zairense lá veio, em parte pelo esforço de organizações humanitárias, e o êxodo prosseguiu para o Zaire. Para todos os membros da minha família esse foi o adeus definitivo a Angola, pois nunca mais nenhum regressaria.
Já em Kinshasa, embarcámos num Boing 747 com destino a Lisboa. Que estranho ajuntamento de seres vivos deve esse ter sido! Que desfile de miséria e tristeza! Certo dia, dai a muitos anos, vendo um noticiário sobre a guerra na Bósnia e a miséria e fuga de populações, ouviria a minha avó dizer baixinho “e pensar que passámos por aquilo, meu Deus!” E isso far-me-ia na altura recordar o que felizmente não poderia recordar por disso não ter memoria, mas isso será mais à frente.
No aeroporto em Kinshasa o meu avô materno perante a informação de que não poderia embarcar a sua pequena cadela, a Riquita, e a perspectiva de ter de a abandonar ali, não se preocupou muito, não lutou, não se exaltou, não pediu nada mais a ninguém pois estava exausto. Simplesmente a enfiou dentro de um cesto de palha e lá entrou ele com a sua cadela no avião! E ela fez uma viagem de avião de muitas horas em silêncio, sem ninguém se aperceber, apenas com a ponta do nariz de fora para respirar. Naquele caos até os animais parecem ter ganho consciência dos perigos a que estavam expostos, e as pessoas estavam cansadas demais para travar pequenas e estúpidas batalhas. Isto eu ouvi contar, porque não me lembro de nada a não ser de brincar com a Riquita já em Portugal.
Depois disto vem então a parte de que me lembro! E o que me lembro é de sentir um forte cheiro a borracha na aterragem em Lisboa. Tinha dois anos e dois meses sensivelmente, mas recordo já. Estava um dia com pouca luz, cinzento, e estava muito frio para as roupas que trazíamos vestidas. Era Inverno em Portugal e havia muita gente junta. Era o regresso dos “retornados”! Eu nunca fui um retornado, nem a minha mãe, pois nunca daqui tínhamos partido para Angola para mais tarde voltarmos. Eu vim de lá, simplesmente! Seria um “vindo”, quando muito, se me quisessem mesmo classificar. Mas não me quiseram classificar. O que as autoridades portuguesas quiseram mesmo, e fizeram, foi internar-me no hospital Curry Cabral durante tempos que pareciam não ter fim. E estava impedido de ver os meus pais ou quem quer que fosse. Os meus únicos contactos eram com médicos, enfermeiras, e tantas outras crianças que por ali andavam, nuas por vezes, vestidas outras. Nunca deixei que me fizessem andar nu, e recordo hoje com carinho a Dona Madalena, não sei se uma enfermeira se uma auxiliar, que me dava todas as atenções que podia. Nunca mais a voltei a ver, mas foi ela quem raspou um pouco da tinta branca do interior das janelas do meu quarto do rés-do-chão, para que os meus pais pudessem espreitar de vez em quando do jardim e confirmar a minha recuperação, que estava vivo, sei lá! A minha cama tinha grades em volta, e o meu travesseiro era um urso amarelo-torrado de pelúcia, que mantive até aos meus onze anos de idade, já velhinho e usado.
Recordo o dia em que tive alta. Um casal esperava-me no jardim do Curry Cabral. Não me recordo bem dela, mas ele tinha, se a memória não me pregou aqui uma partida, um blusão de pele castanho. Eram os meus pais, e eu perguntei-lhes imediatamente se íamos à praia. Era Inverno. Despedi-me da Dona Madalena, que me deu algo doce para eu comer no caminho para sempre longe dela. Claro que continuei muito doente, claro que durante meses todos continuaram a não dar nada por mim, claro que era “pele e osso”, claro que não comia nada, claro que até me levaram a uma curandeira africana em Lisboa que disse que eu trazia o mal. Mas é escusado dizer que aqui estou! No entanto, tudo isto se passou há muito tempo já. Foi já ontem e hoje é diferente.
HOJE
Tenho 33 anos. Após a separação dos meus pais, tinha eu onze anos de idade, vim viver para Coimbra, onde prossegui os meus estudos e onde me licenciei por fim em Antropologia. Porquê Antropologia? Teve alguma influência o meu passado, o passado dos meus pais, tios e avós, nesta opção? A aventura africana da minha família seduzia-me nas aulas de Povos e Culturas de África? Não! Absolutamente nenhuma. Licenciei-me com uma tese sobre arte e etnografia africanas como o podia ter feito com uma sobre o uso de padrões de xadrez nas roupas tradicionais das populações que vivem da pesca em Portugal.
Desde que vim para Portugal vivi em vários sítios. Primeiro em Lisboa, depois na Nazaré, onde comecei os meus estudos, vindo mais tarde para Coimbra, onde prossegui esses estudos e os conclui. Passei depois pela Lousã, pelo Porto, uma passagem por Londres, novamente Porto e, no fim, de volta a Coimbra. A Angola nunca mais regressei.
Em Coimbra chego a trabalhar durante alguns meses com jovens que viriam de Angola para Portugal, vítimas de minas terrestres, para serem submetidos nos hospitais da Universidade a intervenções cirúrgicas aos membros perdidos. Também eles me contaram de Angola, também eles me deram notícias e me fizeram sonhar.
A 27 de Outubro de 2006 falece o meu avô materno, o tal que trouxe a cadela num cesto farto de conversas, e por coincidência nesse mesmo mês, dias depois, na sequência de um contacto com uma agencia de consultoria internacional sediada em Bruxelas, fui contratado como especialista para Angola numa missão da Comissão Europeia nos PALOP. Já não pude dar essa mesma notícia ao meu avô que tinha feito a viagem para Angola em tempos muito mais difíceis.
AMANHÃ
Ao fim de 31 anos vou finalmente regressar! Não sei bem a quê eu regresso, se às origens, se a casa, se à terra. Não consigo ainda compreender o que me vai acontecer. No entanto, e por mais que não o consiga explicar, sinto que é algo demasiado grande o que está para vir. Assusta-me e chama por mim ao mesmo tempo, de uma forma a que eu nunca conseguiria resistir mesmo que quisesse.
Dia 17 de Janeiro de 2007, às 22.15 h, embarco num voo da TAP que me vai levar na minha primeira viagem a outro continente. E que outro continente! Aquele onde um dia fui desejado e nasci. No dia seguinte, às 7.00 h da manhã, com o nascer do dia, as portas desse avião vão ser abertas e há-de chegar o momento em que me levantarei do meu lugar e me encaminharei para a saída. Tenho a certeza de que me irei emocionar, não é possível pensar que possa ser de outra forma. E lá chegará o instante em que, já fora da influência do ar condicionado do avião, sentirei após mais de três décadas de ausência o efeito do ar quente e húmido de Angola. Vou chegar ao nascer de mais um dia, em plena estação das chuvas, e pode ser ilusão mas sinto verdadeiramente que só lá me poderei finalmente conhecer, sentir-me completo, adulto, descodificado.
Não sei ainda se ficarei apenas em Luanda, onde já sei ir ficar a residir nas Ingombotas, ou se irei fazer incursões pelos arredores ou por províncias do interior. Não estarei em férias, e sim numa missão, com um trabalho concreto, com contactos a fazer, com reuniões a efectuar, com relatórios a escrever, com conclusões a tirar, com discussões a empreender. Mas todos aqueles que me contrataram, que contam com o meu desempenho e desenvoltura, com os meus conhecimentos e contactos no âmbito desta missão da Comissão Europeia, e que sobre os nossos relatórios e conclusões irão posteriormente basear a sua intervenção nos PALOP’s, a estratégia europeia para África, não sabem um pequeno detalhe sobre mim, algo que eu não referi no Curriculum. É que também eu nessa missão terei uma agenda própria, uma missão paralela, algo que só a mim diz respeito. Tentar saber quanto de mim é dali e se me será possível depois regressar. Tenho também a missão de me tentar conhecer a mim próprio e por isso mesmo irei uns dias antes do coordenador.
Durante anos sonhei várias vezes um mesmo sonho: estava em Luanda, sozinho na praia pela primeira vez; tinha à minha frente o Atlântico sul, quente, pacífico; estava sol, haviam palmeiras na praia, e eu começava a correr pela areia em direcção ao mar azul, e ia-me despindo em andamento e atirando as roupas pelo caminho; até que sentia nos pés, e depois nas pernas, e depois no tronco e finalmente no rosto o mar de Luanda; e então vinha à superfície respirar, e em silêncio gritava de felicidade. Falta pouco, isso é já amanhã.
(Fotografia: Paris, 9 de Dezembro de 2006 / Texto: Coimbra, 28 de Novembro de 2006)
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Nasci em Angola no dia 23 de Setembro de 1973, numa cidadezinha do interior, capital do Kwanza Norte, chamada Salazar. Angola era uma das colónias portuguesas em África, e vivia já desde os inícios dos anos 60 uma situação tensa e violenta, com grupos organizados lutando supostamente pela independência e auto-determinação daquele país, tendo tido início com os levantamentos e massacres da população branca e alguns grupos locais, como os Ovimbundo, por parte de membros da União dos Povos de Angola (UPA). E o Kwanza Norte, terra de café, foi uma das regiões mais massacradas no território angolano, pois era muito cobiçada e muito rica em vários produtos e minerais.
Em Novembro de 1975 Angola alcança finalmente a independência desejada. Começa então um outro caos, uma nova forma de inferno, com a queda, um após outro, dos ícones coloniais numa guerra civil que viria a durar décadas, a minar grande parte do território e a custar a vida a milhares de pessoas. A cidadezinha onde eu tinha nascido, Salazar, toma então o nome de N’Dalatando, abandonando o nome do odioso ditador António de Oliveira Salazar. Eu tinha pouco mais de dois anos de idade quando, com os meus pais e restante família, espalhados todos um pouco por toda aquela zona do Kwanza Norte e pela capital, Luanda, fui obrigado pelas armas a abandonar a minha casa, o sítio onde tinha crescido, Quiculungo. Ouvi contar que era já demasiado tarde para tentar chegar de carro à capital, a Luanda, e procurar aí alguma da segurança que já não existia no interior norte, ocupado pela Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) apoiada pelos Estados Unidos. Ouvi contar, porque não me lembro. As estradas estavam já tomadas por guerrilheiros da FNLA, geralmente hostis às populações portuguesas, e a segurança da capital, nas mãos do Movimento Popular para a Libertação Angola (MPLA), com o apoio da URSS, seria impossível já de alcançar. Era tarde demais. O abandono de Quiculungo deveria ter sido antecipado, mas as pessoas nunca quiseram acreditar que se chegaria àquele ponto. Então, naquele distante mês de Janeiro de 1976, debaixo do som dos tiros disparados na rua, do choro, dos gritos, fizeram-se malas à pressa e integrámos colunas de automóveis e camiões em êxodo pelas estradas em direcção ao norte, à fronteira com o Zaire, sem protecção alguma pois as tropas portuguesas tinham abandonado Angola logo após a independência. Estávamos entregues a nós mesmos, e aos cartões de membro de todos os partidos nacionais que geralmente as pessoas tinham numa tentativa de acender velas a Deus e ao Diabo, e nem todos os membros da minha família sabiam uns dos outros. A guerra tinha-nos chegado a todos subitamente, sem pré-aviso, e apanhou-nos nos hábitos diários. Cada um fez então o que pôde, o que tinha de fazer, independentemente do que sentia por dentro. Isto disseram-me, porque não me recordo. A sobrevivência foi procurada por todos os meios disponíveis, esse é um dos milagres do Homem. Isto ninguém me disse, e só hoje o posso pensar.
Dias mais tarde eram milhares dentro de viaturas, sujos, com fome, cansados, com medo, demasiado confusos, só à espera de autorização das tropas zairenses para atravessar a fronteira para aquele país vizinho e abandonar de vez toda a vida que aconteceu em Angola. E nem todos sabiam de todos, estando perdidos muitos uns dos outros. Ouvi contar que eu estava muito doente nessa altura. Ouvi contar que poucos davam o que quer que fosse por mim, pela minha sobrevivência. Mas a autorização zairense lá veio, em parte pelo esforço de organizações humanitárias, e o êxodo prosseguiu para o Zaire. Para todos os membros da minha família esse foi o adeus definitivo a Angola, pois nunca mais nenhum regressaria.
Já em Kinshasa, embarcámos num Boing 747 com destino a Lisboa. Que estranho ajuntamento de seres vivos deve esse ter sido! Que desfile de miséria e tristeza! Certo dia, dai a muitos anos, vendo um noticiário sobre a guerra na Bósnia e a miséria e fuga de populações, ouviria a minha avó dizer baixinho “e pensar que passámos por aquilo, meu Deus!” E isso far-me-ia na altura recordar o que felizmente não poderia recordar por disso não ter memoria, mas isso será mais à frente.
No aeroporto em Kinshasa o meu avô materno perante a informação de que não poderia embarcar a sua pequena cadela, a Riquita, e a perspectiva de ter de a abandonar ali, não se preocupou muito, não lutou, não se exaltou, não pediu nada mais a ninguém pois estava exausto. Simplesmente a enfiou dentro de um cesto de palha e lá entrou ele com a sua cadela no avião! E ela fez uma viagem de avião de muitas horas em silêncio, sem ninguém se aperceber, apenas com a ponta do nariz de fora para respirar. Naquele caos até os animais parecem ter ganho consciência dos perigos a que estavam expostos, e as pessoas estavam cansadas demais para travar pequenas e estúpidas batalhas. Isto eu ouvi contar, porque não me lembro de nada a não ser de brincar com a Riquita já em Portugal.
Depois disto vem então a parte de que me lembro! E o que me lembro é de sentir um forte cheiro a borracha na aterragem em Lisboa. Tinha dois anos e dois meses sensivelmente, mas recordo já. Estava um dia com pouca luz, cinzento, e estava muito frio para as roupas que trazíamos vestidas. Era Inverno em Portugal e havia muita gente junta. Era o regresso dos “retornados”! Eu nunca fui um retornado, nem a minha mãe, pois nunca daqui tínhamos partido para Angola para mais tarde voltarmos. Eu vim de lá, simplesmente! Seria um “vindo”, quando muito, se me quisessem mesmo classificar. Mas não me quiseram classificar. O que as autoridades portuguesas quiseram mesmo, e fizeram, foi internar-me no hospital Curry Cabral durante tempos que pareciam não ter fim. E estava impedido de ver os meus pais ou quem quer que fosse. Os meus únicos contactos eram com médicos, enfermeiras, e tantas outras crianças que por ali andavam, nuas por vezes, vestidas outras. Nunca deixei que me fizessem andar nu, e recordo hoje com carinho a Dona Madalena, não sei se uma enfermeira se uma auxiliar, que me dava todas as atenções que podia. Nunca mais a voltei a ver, mas foi ela quem raspou um pouco da tinta branca do interior das janelas do meu quarto do rés-do-chão, para que os meus pais pudessem espreitar de vez em quando do jardim e confirmar a minha recuperação, que estava vivo, sei lá! A minha cama tinha grades em volta, e o meu travesseiro era um urso amarelo-torrado de pelúcia, que mantive até aos meus onze anos de idade, já velhinho e usado.
Recordo o dia em que tive alta. Um casal esperava-me no jardim do Curry Cabral. Não me recordo bem dela, mas ele tinha, se a memória não me pregou aqui uma partida, um blusão de pele castanho. Eram os meus pais, e eu perguntei-lhes imediatamente se íamos à praia. Era Inverno. Despedi-me da Dona Madalena, que me deu algo doce para eu comer no caminho para sempre longe dela. Claro que continuei muito doente, claro que durante meses todos continuaram a não dar nada por mim, claro que era “pele e osso”, claro que não comia nada, claro que até me levaram a uma curandeira africana em Lisboa que disse que eu trazia o mal. Mas é escusado dizer que aqui estou! No entanto, tudo isto se passou há muito tempo já. Foi já ontem e hoje é diferente.
HOJE
Tenho 33 anos. Após a separação dos meus pais, tinha eu onze anos de idade, vim viver para Coimbra, onde prossegui os meus estudos e onde me licenciei por fim em Antropologia. Porquê Antropologia? Teve alguma influência o meu passado, o passado dos meus pais, tios e avós, nesta opção? A aventura africana da minha família seduzia-me nas aulas de Povos e Culturas de África? Não! Absolutamente nenhuma. Licenciei-me com uma tese sobre arte e etnografia africanas como o podia ter feito com uma sobre o uso de padrões de xadrez nas roupas tradicionais das populações que vivem da pesca em Portugal.
Desde que vim para Portugal vivi em vários sítios. Primeiro em Lisboa, depois na Nazaré, onde comecei os meus estudos, vindo mais tarde para Coimbra, onde prossegui esses estudos e os conclui. Passei depois pela Lousã, pelo Porto, uma passagem por Londres, novamente Porto e, no fim, de volta a Coimbra. A Angola nunca mais regressei.
Em Coimbra chego a trabalhar durante alguns meses com jovens que viriam de Angola para Portugal, vítimas de minas terrestres, para serem submetidos nos hospitais da Universidade a intervenções cirúrgicas aos membros perdidos. Também eles me contaram de Angola, também eles me deram notícias e me fizeram sonhar.
A 27 de Outubro de 2006 falece o meu avô materno, o tal que trouxe a cadela num cesto farto de conversas, e por coincidência nesse mesmo mês, dias depois, na sequência de um contacto com uma agencia de consultoria internacional sediada em Bruxelas, fui contratado como especialista para Angola numa missão da Comissão Europeia nos PALOP. Já não pude dar essa mesma notícia ao meu avô que tinha feito a viagem para Angola em tempos muito mais difíceis.
AMANHÃ
Ao fim de 31 anos vou finalmente regressar! Não sei bem a quê eu regresso, se às origens, se a casa, se à terra. Não consigo ainda compreender o que me vai acontecer. No entanto, e por mais que não o consiga explicar, sinto que é algo demasiado grande o que está para vir. Assusta-me e chama por mim ao mesmo tempo, de uma forma a que eu nunca conseguiria resistir mesmo que quisesse.
Dia 17 de Janeiro de 2007, às 22.15 h, embarco num voo da TAP que me vai levar na minha primeira viagem a outro continente. E que outro continente! Aquele onde um dia fui desejado e nasci. No dia seguinte, às 7.00 h da manhã, com o nascer do dia, as portas desse avião vão ser abertas e há-de chegar o momento em que me levantarei do meu lugar e me encaminharei para a saída. Tenho a certeza de que me irei emocionar, não é possível pensar que possa ser de outra forma. E lá chegará o instante em que, já fora da influência do ar condicionado do avião, sentirei após mais de três décadas de ausência o efeito do ar quente e húmido de Angola. Vou chegar ao nascer de mais um dia, em plena estação das chuvas, e pode ser ilusão mas sinto verdadeiramente que só lá me poderei finalmente conhecer, sentir-me completo, adulto, descodificado.
Não sei ainda se ficarei apenas em Luanda, onde já sei ir ficar a residir nas Ingombotas, ou se irei fazer incursões pelos arredores ou por províncias do interior. Não estarei em férias, e sim numa missão, com um trabalho concreto, com contactos a fazer, com reuniões a efectuar, com relatórios a escrever, com conclusões a tirar, com discussões a empreender. Mas todos aqueles que me contrataram, que contam com o meu desempenho e desenvoltura, com os meus conhecimentos e contactos no âmbito desta missão da Comissão Europeia, e que sobre os nossos relatórios e conclusões irão posteriormente basear a sua intervenção nos PALOP’s, a estratégia europeia para África, não sabem um pequeno detalhe sobre mim, algo que eu não referi no Curriculum. É que também eu nessa missão terei uma agenda própria, uma missão paralela, algo que só a mim diz respeito. Tentar saber quanto de mim é dali e se me será possível depois regressar. Tenho também a missão de me tentar conhecer a mim próprio e por isso mesmo irei uns dias antes do coordenador.
Durante anos sonhei várias vezes um mesmo sonho: estava em Luanda, sozinho na praia pela primeira vez; tinha à minha frente o Atlântico sul, quente, pacífico; estava sol, haviam palmeiras na praia, e eu começava a correr pela areia em direcção ao mar azul, e ia-me despindo em andamento e atirando as roupas pelo caminho; até que sentia nos pés, e depois nas pernas, e depois no tronco e finalmente no rosto o mar de Luanda; e então vinha à superfície respirar, e em silêncio gritava de felicidade. Falta pouco, isso é já amanhã.
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