Friday, September 05, 2008

Dia de Eleições


Durante cerca de três minutos um avião voa muito baixo, a cerca de uns três metros da superfície de um oceano calmo, desafiando-o. Trata-se do atlântico sul, que nesse dia está espantosamente plácido, apenas com pequenas cristas brancas de espuma no cimo de pequenas ondas ridículas. Quase não se ouve o som do motor da aeronave.

Uma câmara está posicionada sob o nariz do aparelho, gravando imagens que darão a quem as vir a sensação dele próprio planar em voo rasante, sem qualquer vislumbre de terra. Trata-se de provocar o desejo de abrir os braços para voar, para planar sem recurso a máquinas. Ouve-se um som cadenciado, relaxante, hipnótico, que se sente ir-se extinguindo. O adivinhar da aproximação do final da música abre uma outra porta, deixa antever uma mudança: a aproximação da terra.

A música finda, e no silêncio a câmara ergue-se lentamente, ligeiramente, como se a aeronave ganhasse altitude. O sol de fim de tarde está à direita quase tocando a linha do horizonte, e com o alargar do campo de visão devido ao ganho de altitude vê-se aproximar rápido um pontão quebra ondas feito de blocos maciços de pedra e depois um grande cargueiro enferrujado afundado de estibordo na baía. Num movimento rápido e preciso a aeronave ganha de novo altitude precisamente no momento em que parece ir chocar contra esse mesmo cargueiro. Do alto podemos agora observar dezenas de cargueiros fundeados na baía. Luanda. Bruscamente, como se o sol poente se tivesse reposicionado no horizonte, aparece agora de frente num super grande plano, ofuscando, magoando. Esbatem-se agora as cores numa tela inundada de uma luz que tudo elimina.

Numa rua secundária um homem dorme sentado no chão, de costas contra um dos pneus de um Toyota branco coberto de terra seca. Há lixo espalhado pelo chão, sacos voando com o vento, pelas ruas soltos, latas amolgadas que já não rolam mais. Há fios de água pestilenta escorrendo de lugares invisíveis, e moscas. Não tarda a noite cairá e virão os mensageiros da malária e da cólera. Uma câmara viaja pendida de uma mão invisível, quase junto ao chão, e regista trapos largados pelos passeios, bancas de fruta e vegetais largados nos vãos dos prédios, um fogareiro ainda fumegante sobre o qual se encontra uma grelha ainda com quatro bananas a assar. Cães lambem-se as feridas na frescura da noite que se aproxima. As acácias deixam finalmente cair o seu pó sem medo de incomodar.

Na noite não se ouve mais o som dos geradores de electricidade nem as ocasionais rajadas de AK. Não há som de vozes. É sexta-feira e não se cheiram os aromas de festa. A câmara sobe, virada para o chão, como se elevada por um balão de ar quente. Primeiro vê-se a rua, depois o quarteirão, depois o bairro, e continua o seu movimento ascendente até abranger toda a cidade. Algo incómodo fica colado à retina dos olhos: não há movimento de automóveis nas ruas. De novo a câmara desce, e desce, e vai descendo até se encontrar ao nível dos últimos andares de um prédio de 15, incompleto, vestido apenas de tijolo, cimento, e malhas de bombardeamentos das últimas eleições livres. Dezenas de tecidos coloridos pendem de cordas, de janelas, de arames esticados em varandas no lugar de parapeitos e de onde todos os anos crianças caem para o seu voo de baptismo.

Por segundos a câmara dá-nos uma pausa, focando com clareza uma destas janelas de um dos últimos andares de um prédio triste de 15. Depois avança em direcção à janela aberta, penetrando na casa, devassando a sua intimidade pobre. Um casal e duas crianças dormem juntos no chão de uma divisão, sobre esteiras. De lado, o homem da casa tem o seu braço esquerdo sobre a sua mulher. As crianças estão atiradas à toa, uma repousando a cabeça sobre a coxa da outra, como se o sono as tivesse apanhado a meio de uma brincadeira. A um canto da cozinha há uma caixa de plástico repleta de latas de cerveja cheias, quentes. Há na banca quiabos, há jimboa, há mandioca, há cebolas e tomates. Numa bacia de plástico, amanhados e cobertos com sal, estão meia dúzia de cacussos prontos para as brasas. A câmara recua lentamente dali, até sair pela janela de onde entrou. Devagar, afasta-se do prédio, sempre com ele no centro da imagem.

Esta foi apenas mais uma viagem. Todos os habitantes estão adormecidos, toda a vida se esgotou na própria vida, todo o sofrimento se transformou em paz, hoje é dia de eleições.

(Fotografia: Luanda, Angola, Agosto de 2007 / Texto: Coimbra, Agosto e Setembro de 2008)

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