Friday, March 28, 2008

Sereia


Eras o céu negro de noite sem lua, eras o vento que soprava de Oeste. O mar que lá embaixo revolvia sem piedade o cansado areal ecoava em gemidos de lenta agonia por todas as grutas da Falésia Grande, e eu aqui.

Eras o segredo que todas as aves guardavam, de que todas elas falavam nos dias fatigados de fim de Março quando se reuniam para tentar encontrar um sentido para as coisas.

Eras a luz cadenciada do farol que varria os limites da escuridão muito para além do sítio onde a terra acaba e o mar cai na absurda vastidão do espaço.

Silêncio. Esquece tudo o que aprendeste. És o que és e nada mais. Nada conhecemos para além dos contornos dos nossos corpos, e ao engordarmos tomamos mais espaço na vida. Há mais de nós para conhecer em cada grama, em cada milímetro roubado ao espelho pelo nosso reflexo.

Silêncio. Esquece o que te ensinaram. Não há nada para saber para além de ti. Fecha os olhos, não há nada lá fora. Só tu. Tu eras o que havia lá fora para saber, para ser conhecido. Eras os barcos que partiam na maré cheios de esperança, e que regressavam vazios trazendo a fome e rostos cansados onde a idade se notava sobretudo à volta dos olhos e da boca. E eu aqui. Eras a estrada deserta que cortava o pinhal em busca do Atlântico para se perder em areias quentes, outrora. E eu aqui. Eras a senhora idosa que passeava de braço dado ao marido e com um cãozinho centenário pela trela, numa atitude de quem passeia ambos: aqui urina o cãozinho e mais à frente o fará o marido. Eras o rapazito que insistentemente puxava o braço da mãe, para tentar escapar e, quem sabe, ir correr à pedrada as gaivotas. E eu aqui. Eu aqui parado, incrédulo, enquanto passavam polícia e bombeiros em direcção à praia. Sirenes ensurdecedoras, gritos de todos os finados do mundo, chamavam ao local dezenas de mirones para contemplar o teu corpo nu, rasgado de encontro à Falésia onde por momentos fechavas os olhos e eras tudo à tua volta. E assim de repente, mesmo com os olhos abertos, a paisagem desapareceu do meu horizonte numa tela branca à espera de mãos habilidosas que a pintem novamente com os frágeis traços da tua vida.

(Fotografia: Porto das Barcas, Portugal, Outubro de 2007 / Texto: Coimbra, Portugal, 1997)

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Tuesday, March 04, 2008

O teu nome


Nesta noite metálica, verde, azul e prateada de lamparinas acesas ao acaso em passeios de pedra, noite em que as aves diurnas navegam sobre as nossas cabeças num céu lilás escuro sem querer repousar, eu escrevo o teu nome. Escrevo o teu nome em paredes brancas de cal, no meio de uma multidão embriagada de festa que passa por mim com garrafas de espumante nas mãos, com chapéus coloridos e serpentinas. Hoje é a noite de todas as noites. Hoje ouvem-se aqui gritos de alegria, risos, rolhas que saltam de garrafas. Hoje ouvem-se aqui buzinões nas avenidas e toda a noite se vestiu com os reflexos do dia. Como um animal único, hoje milhares de pessoas enchem as principais artérias da cidade aos saltos, abraçando-se e beijando-se em promessas secretas e apenas intuídas. Eu escrevo o teu nome pela cidade, nas paredes, nos bancos de jardim, mesmo no meio da estrada. Escrevo o teu nome e sorrio. Escrevo o teu nome e rio à gargalhada. Escrevo o teu nome e peço a quem passa para me fotografar junto dele, de braço dado, como amantes que ainda somos.

(Fotografia: Vaticano, Março de 2006 / Texto: Coimbra, Portugal, 4 de Março de 2008)

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