Wednesday, May 30, 2007

O dia em que Deus morreu

O dia em que Deus morreu foi um dia como todos os outros. Nada o fazia prever. As pessoas acordavam e encaminhavam-se ensonadas para o trabalho. Estava um pouco de frio, mas brilhava um sol límpido que estimulava o canto dos pássaros na minha rua. Tomei o pequeno almoço como de costume num café próximo de casa, sozinho, passando os olhos pelo jornal sem que nada me despertasse muito a atenção, e segui para o meu trabalho.

Foi próximo do fim da tarde já que se começaram a ouvir os rumores. Algo tinha acontecido e as pessoas juntavam-se em grupos falando com pesar e uma expressão grave desenhada nos rostos. Procurei saber o que se passava e disseram-me para ligar a rádio na Emissora Nacional, que não ia acreditar, mas que Deus tinha morrido. Regressei ao meu gabinete e assim o fiz. Tinha acabado de sintonizar a estação quando ouço através das ondas de rádio a difusão de uma voz masculina comovida que dizia: “Repito, de acordo com a agência noticiosa Reuters Deus morreu hoje, próximo das três da tarde, quando efectuava uma visita oficial ao Panamá. Ainda não se conhecem os pormenores deste acontecimento, sabendo-se apenas que Deus se sentiu mal e caiu entre a sua comitiva, sendo imediatamente assistido pelos seus Ministros que o conduziram para longe dos olhares curiosos...”

Desliguei a rádio, cortando a meio o discurso do locutor, e dirigi-me à janela para olhar a rua lá em baixo, vendo os mesmos grupos de pessoas comovidas em todos os passeios falando com expressões dolorosas. Todos estariam a comentar a morte do líder, e o tráfego parecia ter abrandado. O sol alaranjado deitava-se já suavemente no horizonte e peguei na minha pasta, enfiando à pressa uns papéis lá dentro. De seguida peguei no casaco e dirigi-me para casa.

Na rua as pessoas olhavam-me com olhos tristes. Todos se olhavam condoídos uns aos outros, como estranhos dando-se os sentimentos recíprocos, e segui pelas ruas com uma calma de que já não havia memória. De resto tudo estava igual, a luz de fim de tarde, a brisa, o cheiro da cidade... Antes de ir para casa passei num self-service para comprar qualquer coisa já feita para levar para o meu jantar. Por trás do balcão havia uma televisão acesa e o empregado, de costas para a porta de entrada, olhava as notícias com a boca aberta de espanto. Pigarreei para chamar a sua atenção para a minha presença. Ele virou-se, encarando-me com a mesma expressão triste dos outros lá fora. No pequeno ecrã colorido podiam ver-se imagens de rostos do mundo inteiro em comovente sofrimento. Massas de gente iam-se concentrando com velas nas praças das cidades. Repórteres do mundo inteiro debatiam-se pelas escassas informações disponíveis...

Levei comigo chop-sui de vaca e arroz chau-chau, e entrado em casa pousei na cozinha os embrulhos e deitei o casaco sobre o sofá. Liguei o televisor no canal noticioso, onde a necessária notícia da morte de Deus, que iria ocupar a humanidade por longo período, se intercalava com outras menores como o número de mortos do dia no Iraque, o reacender de tensões antigas entre a Venezuela e os Estados Unidos, o aumento do número de desempregados no sul europeu... Cortei o som do aparelho, deixando apenas a imagem como companhia na minha sala vazia, e preparei um uísque com três pedras de gelo. Bebi-o junto à janela para a rua, erguendo os olhos para o muro da casa em frente da minha, onde o sol morria no mais belo festival de cor que havia visto. No telhado um gato movia-se preguiçoso, alheio a tudo excepto aos últimos raios de sol.

(Fotografia: alteração cromática, Bilbau - Espanha, Abril de 2007 / Texto: Coimbra - Portugal, 30 de Maio de 2007)

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Wednesday, May 02, 2007

O movimento perpétuo e colorido das pedras

Vivi das palavras e para elas. Com as palavras construí cenários possíveis e impossíveis, ergui cidades, dei vida a seres que de outro modo não viveriam jamais. As palavras foram sempre o meu mundo, protegeram-me dando-me alternativas. Sempre que os meus olhos e ouvidos me revelavam uma realidade que não era exactamente o que dela eu esperava pegava na caneta e, movendo-a sobre papel, criava com as palavras uma outra opção possível. Enganando-me a mim mesmo tornava a vida viável. Hoje pergunto: que cidades, que estradas, que casas eu construí em tempos? Com que pedras ergui os meus muros?

Agora estou no olho de um furacão. Dei vida ao que não devia viver para além dos limites do racional. A meio do caminho perdi a minha razão, toda a lógica e propósito do que fazia, e sinto-me engolido pelo mundo e à beira de desistir de jogar com as palavras e com as ilusões que me trazem. Dei-lhes primazia quando deveria ter privilegiado o toque; deixei-as curar-me quando deveria ter deixado as feridas abertas por mais tempo às moscas e ao pó; sonhei com a ordem quando deveria ter acolhido o caos. Quero desistir delas e não sei bem como, mas sorrio ao pensar que quando os meus olhos se fecharem elas serão jogadas comigo à terra, e o que o homem semeou o homem sempre há-de colher.

(Fotografia: Pancorbo, Espanha - Abril de 2007/ Texto: Coimbra, Portugal – 2 de Maio de 2007)

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